Poesia para todos

Bons tempos em que o foco era escrever sobre levezas poéticas e imagéticas. A literatura e a arte têm esse papel: suavizar a lida diária, a caminhada incessante do até o último suspiro. Bem-vindos: o incontornável e o vazio das funções vitais. O invólucro, a casca fina que se dilaceram com doenças escabrosas, fenecimentos corriqueiros, suicídios, enganos médicos são obras do destino ou escolha do sujeito. O que não foi escolha de Luciano e outros que farão parte do índice de violência no país. O estupendo herói está a catar estrelas no infinito céu, em tenra idade. Acidente? Pois, não. O veículo do infeliz foi alvejado com oitenta tiros. Militares atiraram… Mas eles não têm a nobilíssima missão de defender o cidadão e o país? Dúvida cretina.

O Rio é violento. A Cidade Maravilhosa se pinta de sangue. A cidade se derrete nas tempestades, nos prédios caídos, nos tiroteios rotineiros, na violência generalizada. A Poesia está perdida num beco escuro. O cronista lírico morreu na ponta do precipício. O governo bombardeia notícias, medidas provisórias e decretos que entristecem a nação. Os poetas enlouquecem com os estágios sombrios da poesia. Ninguém quer saber da Flor do Lácio, muito menos da Poesia. Um menino no banco escolar me pergunta quem foi Drummond. “Nunca ouvir falar, véi”. Já me acostumei com a gíria. Olho, estupefata, para outros que balançam a cabeça, confirmando desconhecerem o literato mineiro. Não leem poesia… Não querem saber de livros. Estão automatizados, com olhos atravessando nossos corpos. Não veem a ponta do nariz. Tenho gana de sair correndo daquele educandário. Não me vou embora para Pasárgada nem para o Eldorado de Voltaire. Estes sítios oníricos foram explorados de ponta a cabeça, sem deixarem nesgas de riquezas. Está quase fora de moda escrever na folha de papel versos de amor. “O amor já teve, véi. Sangue fala mais alto”.
 

Matança, violência, escândalo, bate-boca, feminicídio, desgraça, pedofilia, acidente e incidente são pautas quentes. Saudosismos à parte, quixotismos à vontade, para quem deseja escarafunchar outras plagas. Essas já deram; sem pessimismo, muito menos realismo, prefiro o ceticismo. Voltemos ao catador; poeta foi, poeta será, até virar notícia velha, pauta fria; ‘fatalidade’ como falaram interlocutores institucionais, vazios de discursos contundentes. Fatalidade é poeta bêbado desabafar com poste e ser preso por subversão. Fatalidade é enfartar tomando lauto café da manhã, depois de uma estratosférica noite de amor. Fatalidade é a turma de o tombo ser atropelada no passeio por uma carreta. Fatalidade é ladear assento em voo com político corrupto. Fatalidade é quebrar o dedo mindinho na porta do carro. Fatalidade é se estabacar de cara no chão e quebrar nariz, braço, ombro e maxilar. Fatalidade é marido desempregado com uma penca de filhos para criar. Fatalidade é ser desvalorizado no trabalho. Fatalidade é morrer na fila do SUS (apesar de não ser fatalidade, mas ineficiência do governo!).

Fatalidade é ter que ter plano da previdência complementar. Fatalidade é a discrepância de salário de professores comparado com o de parlamentares. Fatalidade é ouvir do homem que vestia capa do Batman, dizer que oitenta tiros em um veículo é algo que pode acontecer. Fatalidade é morrer alvejado por tentar salvar o próximo. Isto é ASSASSINATO! É falta de percepção do mundo e dos seres. É falta do exercício da reflexão antes de soltar tiros. Pobre catador a catar estrelas na imensidão do céu…
 

E a poesia a sangrar. Eldorado e Pasárgada na mente humanizadora da arte dos poetas que sabem o que é humanização. Poesia para os militares, ainda que tardia. Poesia para os meninos e as meninas que desconhecem nosso patrimônio literário. Poesia para homens no e fora do poder. Poesia para humanizar essa raça! Humanização confirma, nas palavras de Antônio Candido, a disposição com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, a percepção da complexidade do mundo e dos seres… Eis algumas das funções da Literatura. Os poetas sabem que a Literatura torna os seres mais amáveis, abertos ao diálogo, à natureza e ao próximo. Literatura para todos, especialmente para os militares, para que eles possam exercer o poder da reflexão e do afinamento das emoções, para não cometerem mais ‘fatalidades’ ao colocarem as ações dos dedos sem a ação da cognição. O catador não teve tempo de usufruir todos os néctares da poesia, mas está a catar estrelas nos céus de Pasárgada e do Eldorado…

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV e autora de 16 livros; Membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Presidente da ALACIB-Mariana