Pacote antidepressão

Acordei de madrugada. Parcas horas dormidas… A insônia me persegue há algum tempo. Sono diminui com a idade, com mais intensidade em casos de depressão… Bengala amortece tombos da alma? Ao contrário do que dizem os incultos sobre o assunto, depressão não é frescura do sujeito, muito menos doença de rico! Também não é mal do século, pois sempre existiu. Combater depressão não é sair por aí, saltitando feito canguru, coelho ou tico-tico. 

Quem nunca sofreu, de fato, desse mal avassalador, que dilacera indivíduos feito vírus de alta potência, desconhece o cérebro. E quem sou eu para falar das multiplicidades cerebrais? Não sou neurologista, psiquiatra, psicanalista, muito menos psicóloga; mas tive forte depressão. Aprendi a conviver com a enfermidade. Não de mãos dadas; mas em forte combate. A causa estava nos neurotransmissores. Excesso ou falta é descompasso. Adrenalina e dopamina nas altas. Fortes batimentos cardíacos. Dor no peito, sudorese, insônia, tremores, dores no corpo, pressão alta. Situação: grave. Indicação: remoção da suprarrenal. Causa: malditos feocromocitomas. Vocábulo científico, difícil de pronunciar. Há material às pencas na internet para biúdos; minha biudice me levou ao pânico. Feocromocitoma é tumor na suprarrenal.

Seis horas na sala de cirurgia. Preceptor, residentes, equipe responsável e parafernália de equipamentos. Mandei o preceptor às favas. Dois dias depois, a depressão bateu à porta. Depressão não é luto, tristeza por perder emprego ou marido. Depressão é moléstia severa. O sujeito não tem gana de viver. Dói respirar, expirar. Dói acordar, dormir ou não conseguir dormir. Dói ficar o dia inteiro desolado, em cima de uma cama; olhar opaco, rosto sem expressão; sem projeto nem planejamentos. Sem medo ou com medo de morrer. Grande maioria desconhece os componentes químicos do corpo. Incluo-me no grupo. Faltaram serotonina, noradrenalina e adrenalina depois da remoção. Estou a escrever sobre este assunto. Tenho desejo de parar de escrever. Assunto chato.
 

Chego a uma cidade que fica dentro de uma cratera de vulcão. Os vulcões ejetam altas quantidades de aerossóis, poeira e gases na atmosfera. Há poluição na cidade. Imagino a erupção do vulcão. Visualizo, hipoteticamente, casas, pessoas, animais, prédios, praças, carros sendo destruídos pelas lavas expelidas. Quanto pessimismo. Que o Deus do fogo esteja eternamente em paz com os seres da terra.

Retorno ao tema, percurso longo, penoso para sair da zona de perigo da enfermidade, penso, enquanto o carro percorre quilômetros de estrada. Que raio de lugar é esse? Tempo fresco, nublado, entre Mariana e Ouro Preto. A bruma é característica dos amanheceres na região dos Inconfidentes, ar úmido de montanhas esculpidas pelo Divino. Ele sabe o que é padecer na depressão. Ele sabe que não é falta de orar ou ter fé. Os que desconhecem que a depressão é um processo químico, uma doença grave como outra qualquer, estão cheios de receitas prontas para o indivíduo sair do estado depressivo. Há especialistas, altamente preparados, prezados leitores, para ajudarem pacientes que sofrem determinadas moléstias. Há os oncologistas, ginecologistas, cardiologistas, endocrinologistas, clínicos gerais, ortopedistas, cada um em sua área, em seu quadrado.
 

Deus não levanta a mão sobre ninguém, muito menos em determinadas figuras. Que Deus soltaria lambadas pesadas em crianças inocentes que morrem de câncer, bactérias violentas, meningite e outras doenças terminais?

Paramos o carro para esticar as pernas e lanchar. Restaurante impregnado de turistas e estrangeiros. Barulhentos e felizes. Uma guria chama minha atenção. Usa chapelão mexicano; domina a conversa no grupo. Todos olham para ela com ar de estupefação e fascinação, ao mesmo tempo. Beleza exótica, esculpida com equilíbrio. Pernas longas, corpo esguio…
 

Peguei o celular. Trezentas mensagens. Hoje não respondo ninguém. Meu companheiro me chama para a realidade. Dirijo-me ao banheiro. Cumprimento a funcionária que mal responde. Automatizada está a quitar papéis do chão. Mulherada sem educação! As estrangeiras entram fazendo a maior algazarra. Veem um absorvente jogado no vaso sanitário. A exótica grita de susto e nojo. Solta improvérbios, falando mal dos banheiros femininos. A funcionária entende, corre para recolher o absorvente.

Lavo as mãos. Sinto vergonha. Não desaprovo a crítica das adolescentes. Incomodo-me com a falta de asseio de grande parte das usuárias do banheiro feminino. Retorno para o carro. Percorremos mais quilômetros. Paisagem surge exuberante. Verde predomina. Olhar a natureza, segundo minha psicoterapeuta, ajuda. Lembro-me de colegas e amigos que dizem que quem consulta com psiquiatras são doidos. Mais incultos ao meu redor. Mal sabiam eles, que todos precisam sintonizar seus ‘parafusos’.
 

Quem nunca ficou fora do ponto, agitado, estressado, bipolar? No entanto, a desinformação, o desconhecimento, o preconceito e a ignorância falam mais alto. Quem não quer se cuidar, que se recolha em seu ninho cinzento.

Internaram-me no Santa Maria. “Ali é local para doidos”. Mais um preconceito. Foi lá que conheci o anjo que não desistiu do meu caso. Presenciei, e não me assustei, com mulheres que tomaram sonoterapia (o vulgo choque), terapia evoluída, segura e indolor, quando a química não faz mais efeito.

Convivi com esquizofrênicas, catatônicas, suicidas, ex-usuárias de drogas, que saíram da sonoterapia, recuperadas. Pedi o tratamento. Negaram. Meu caso, hormonal. Os neurotransmissores, após retirada das suprarrenais, entraram em parafuso.

Com o tempo e medicamentos, tudo entra em sintonia. Percurso longo. Surgiram palpiteiros de todos os cantos, com receitas ineficientes. Pessoas me procuraram, para falarem sobre o assunto. Reclamaram de irmãos de igrejas, ao falarem que era falta de Deus. Pediram meu testemunho. Neguei. Não pertenço a igrejas. Minha fé é em Deus e na Medicina. Resolvi escrever este texto, após dois anos de severa depressão. A história é larga…

Estamos dentro de uma cratera de vulcão. É festa do livro. Ele me atrai, a festa e festivais me aborrecem. Fecho o bloco de notas. Tiro os óculos, as malas e os livros do carro. Abro as malas para conferência. Sorrio para meu companheiro. Minhas muletas estão na frasqueira…

Observo o calendário florido no jardim. Caminhamos até o destino; milhares de livros organizados nos stands. Palanques para celebridades. Vou-me embora daqui a dois dias. Meu lugar é de porta em porta.

Passo por lojas de peças elétricas, jardins floridos, motos, lojas de peças elétricas, postos de gasolina, avenidas largas e arborizadas, drogarias, pousadas, igreja, delegacia, churrascarias, bancos, loja repleta de balões, casa de pisos, escolas, sinais de trânsito, casa do menor… Rumamos para Pouso Alegre. Encosto o banco. Fecho os olhos. Nem tudo está perdido se o destino corrobora. Corro, a passos vigorosos, atrás da felicidade. Onde ela está? Atrás de uma porta. Sempre esteve. Tirar leite de pedra é fácil, difícil é tirar do ritmo acelerado do cotidiano, a felicidade.
 

A depressão? Era um bicho enorme a me corroer por dentro, que virou um ser pequenino. Mas continua lá, adormecido, se não cuidar, volta a crescer feito bola de neve.

 Tudo pode ser flores, para quem carrega no peito a convicção de que esse mal é combatido com auxílio da psiquiatria, terapia, força na ‘peruca’ e generosas doses de leitura. Rezar, para quem cultua algum dogma, pode fazer parte, também, do pacote antidepressão.

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV e autora de 16 livros; Membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Presidente da ALACIB-Mariana