Atualizado 26/04/2020 às 17:48
Em Mariana um assunto tem chamado a atenção dos moradores e dos políticos locais nos últimos meses: a abertura de um novo loteamento na região do bairro Cabanas, chamado Nova Serrinha. O loteamento reforça, mais uma vez, a ausência de planejamento urbano, um problema que vem se arrastando há décadas na cidade.
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Uma das maiores dificuldades da cidade de Mariana no decorrer dos tempos é o acesso à moradia. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos últimos 20 anos a cidade teve um aumento populacional de 30% ou 14 mil habitantes. Enquanto isso, o aumento territorial urbano foi tímido e aconteceu essencialmente através de ocupações de terrenos pertencentes à Companhia Mina da Passagem (CMP).
Nesse período, outras situações, como o rompimento da Barragem de Fundão, forçaram a mudança de mais moradores para a cidade. Além disso, as grandes obras que ocorrem na cidade e o retorno da mineradora Samarco, atraíram um enorme contingente de trabalhadores para Mariana, tornando o problema da habitação ainda mais urgente. Com aluguéis pagos por empresas e pela Fundação Renova, tais fatos fazem aumentar ainda mais o preço dos aluguéis na cidade.
De acordo com a Associação Comunitária Vila Serrinha, criada em março, hoje a ocupação tem 44 unidades ocupadas por moradores. O loteamento começou há cerca de um ano e a maioria dos barracos começou a ser construída nos últimos meses. A associação foi criada para defender o interesse dos moradores da ocupação e permitir uma melhor articulação com o poder público. De acordo com seu presidente, Márcio Somerlate, a associação ainda não tem registro por falta de dinheiro.
A ocupação tem causado polêmica na cidade e levantado diversos temas e preocupações por parte dos agentes públicos de Mariana, como a falta de planejamento urbano da cidade, a grilagem de terras, as ocupações irregulares em áreas de preservação ambiental e os risco da contaminação dos mananciais que abastecem parte do Município.
Sobre a organização da associação, o vereador Cristiano Vilas Boas informou que acha legítima a mobilização da comunidade e esteve presente na assembleia de fundação da associação. “A gente foi mesmo pra ouvir o que eles tinham pra dizer. Como vereador, tenho que ouvir todo mundo”, afirmou. Entretanto, Cristiano destaca que não apoia a ocupação e esclarece ter orientado os moradores a aguardarem a decisão judicial. “Inclusive eles que colocaram errado lá [nas redes sociais]. Eles sabem mesmo que não tem nada de apoio não. (…) Eu falei pra não fazer ocupação enquanto não resolver, porque depois pode vir uma ação judicial mandando derrubar e eles vão perder tudo”, finalizou.
Nossa reportagem foi convidada por Bruce Portes, professor de história da rede estadual e primeiro secretário da associação, para um visita ao loteamento neste sábado (25), oferecendo-se para mostrar a situação dos moradores, das construções e contar um pouco sobre a história da ocupação.
Bruce explica que não havia mobilização nem associação antes das construções. “Nossa ocupação só existe a partir do momento que começamos a construir. Não podemos esperar decisões judiciais, a nossa situação é urgente”, afirmou, em oposição à recomendação do vereador Cristiano Vilas boas, no sentido de esperar a decisão judicial.
O vereador Juliano Duarte demonstra preocupação com o entorno do parque do Itacolomi: “A Vila Serrinha é uma amortização do Parque do Itacolomi. É uma área de preservação ambiental, um parque estadual e a Serrinha faz parte do seu entorno. Ali estão os nossos maiores mananciais de água que abastecem o município de Mariana, principalmente a ETA [Estação de Tratamento de Água] de Passagem de Mariana”. O vereador ainda ressalta que o plano diretor de Mariana veda “qualquer tipo de ocupação naquele local”.
De acordo com o professor Bruce, a comunidade vai trocar de nome. “Quando as pessoas ficam sabendo que tem uma ocupação Vila Serrinha, começam a achar que estamos invadindo a área ambiental do Itacolomi. Jamais faríamos isso, eu adoro ir na cachoeira de lá, visitar. Nossa ocupação é colada no Santa Rita e no Santa Clara, talvez o próximo nome seja até mesmo Santa Clara 2”, esclarece.
Para a coordenadora da revisão do Plano Diretor, Mônica Bedê, “essa área está inserida no perímetro urbano como zona de adensamento restrito, contornando o perímetro urbano ao sul da sede e de passagem de Mariana”. Ela diz que a proposição inserida no Plano Diretor é uma APA [Área de Proteção Ambiental] para proteção do entorno do parque do Itacolomi pela relevância ambiental da região e proteção de captações de água que existem ali. “Com isso pretende-se contribuir para contenção de ocupação urbana em direção ao Parque, tanto de Passagem quanto da sede”, concluiu.
A associação afirma que enviou um ofício para a prefeitura pedindo o mapa das áreas de preservação ambiental do local para não construírem ou, se for o caso, realocarem possíveis construções, já que o loteamento ainda está em uma fase primária, porém a solicitação ainda não foi atendida.
Bruce ainda não terminou de construir seu barraco, o lote é íngreme e por isso, demandou um longo trabalho desde a terraplanagem, já que não é permitido o uso de maquinário pesado nas construções. “No início conseguimos tratores para abrir as ruas e fazer algumas obras, mas agora a prefeitura multa quem entra com máquinas na ocupação e por isso, todo o trabalho é manual”, explica.
O vereador Juliano Duarte protocolou, no dia 18 de fevereiro, um requerimento solicitando autoridades e a gerência da Mina da Passagem para tratar sobre “medidas a serem tomadas para evitar as ocupações irregulares na região da Serrinha, tendo em vista ser área de preservação ambiental”. Em contato com nossa reportagem ele esclareceu que o requerimento foi aprovado, mas a reunião não aconteceu devido à crise do coronavírus. “Espero que esses órgãos possam tomar as medidas o mais breve possível e que essas cercas possam todas ser retiradas ou a gente vai perder um dos locais mais bonitos que é a região da Serrinha”, afirmou.
A Associação Comunitária Vila Serrinha lamenta por nenhum representante dos moradores ter sido convidado para reunião. De acordo com Bruce “até hoje ninguém tinha vindo na nossa comunidade nos ouvir, já saíram várias notícias que criminalizam nossa ocupação, mas nenhum jornalista apareceu pra ouvir nosso lado”.
Juliano Duarte questiona a real necessidade de moradia das pessoas que estão no local. “A grande maioria, eles invadem, cercam, depois vendem por carro, trocam por moto e assim vai fazendo né? Muitos já tem imóveis”, declarou.
Erivelton Vasconcelos, Secretário de Desenvolvimento Social, informa que já foram identificados casos de pessoas que estão “cercando terrenos para fazer revenda de lotes”. De acordo com o Secretário, com a elaboração do Plano Diretor, serão tomadas medidas para identificação das possibilidades de locais para expansão e das pessoas que não tem habitação e realmente precisam. No caso da Serrinha, ele considera que “normalmente são pessoas que não são necessitadas. São grileiros, é isso que nós estamos verificando, entendeu? A maioria, posso te garantir são grileiros, entendeu?”.
Questionado sobre a acusação de grilagens que estariam acontecendo na ocupação, Márcio Somerlate foi enfático: “Não somos grileiros, sabemos quem são, mas nós não somos, e nem estamos nos escondendo. Criamos a Associação Comunitária Vila Serrinha justamente para aparecer, e andamos na linha, não permitimos construções onde acreditamos ser área ambiental, nem posse de lotes voltados para venda ou especulação. Quem é da nossa associação são pessoas necessitadas. Claro que podem ter pessoas mal intencionadas, mas elas não são problema nosso, representamos os moradores da Vila Serrinha”.
O secretário Bruce aponta os principais lugares onde as autoridades públicas estariam combatendo ocupações, alegando ser áreas inadequadas. O local fica próximas às regiões de captação de água da SAAE, no entorno da antena e outras mais adiante, na estrada de ligação entre a região das Cabanas e Passagem de Mariana.
Nossa reportagem visitou a casa de Dona Amélia e Seu Zé. O casal de idosos é referência para os vizinhos e um dos primeiros moradores do local. Seu Zé trabalha como ajudante de pedreiro e tem problemas do coração. A família construiu a casa há oito meses, mas a energia elétrica foi instalada somente no mês passado. “Tem gente que acha que moramos aqui, porque é fácil, porque é gostoso, mas ninguém pensa na dificuldade que é tomar banho de canequinha e cozinhar na lata”, argumenta.
O quintal tem frutas, verduras e aves para o próprio sustento. A família demonstra preocupação com as ações de despejo: “Muitas vezes as ações são realizadas com violência. Às vezes eles vêm com cachorros. Uma vez o cachorro avançou no Zé e obrigaram ele quebrar os canos de água que abasteciam nossa casa”, se emociona Dona Amélia.
Bruno é o segundo secretário da Associação e trabalhava na Samarco antes do rompimento da barragem de Fundão. Agora trabalha na informalidade e faz alguns bicos como serralheiro. Ele vive com a esposa Fernanda e a filha Esther na primeira casa com telhas coloniais do bairro, motivo de orgulho para todos.
O serralheiro relata detalhes das construções: “Aqui é todos por todos, esse material de construção todo aqui na casa do seu Zé nem é dele, mas é onde dá para guardar, construímos tudo em mutirão, não importa de quem é o lote”, diz revelando uma ponta de orgulho.
Outro morador é o Richard, também conhecido como Espetinho, cuja casa é também uma das primeiras que foram construídas. Espetinho mora sozinho, ou em suas palavras “eu, Xaxa [sua cachorrinha] e Deus”. Richard teve seu primeiro barraco derrubado em uma das ações de despejo, mas reconstruiu: “Não tenho outro lugar pra morar, minha única opção é persistir”, desabafa.
Professor da rede estadual, há alguns anos Bruce recebe seu salário de forma parcelada, assim como seus colegas de profissão: “Não sei quando meu salário cai; o meu aluguel subiu de R$680 para R$800 no início do ano; tenho filhos e não consigo mais pagar todas essas contas. Estamos aqui apenas exercendo o nosso direito à moradia”.
Procurado pela reportagem da Agência Primaz de Comunicação, Duarte Júnior, prefeito de Mariana, respondeu a alguns questionamentos, fazendo menção ao loteamento que está sendo construído próximo à Vila Maquiné. “Lá serão disponibilizadas mais de mil residências para a população de Mariana. É um problema grave e nós tivemos a coragem de resolver este problema”. declarou.
Em relação à Serrinha, Duarte foi categórico: “Nós não vamos permitir em hipótese alguma. As pessoas estão enganadas por pensar que por ser período eleitoral a gente vai ser bonzinho. Eu vou perder a eleição se for o caso, mas nós não vamos admitir nenhum tipo de invasão na cidade de Mariana. Nós não permitiremos que façam uma ocupação irregular num parque, que é a Serrinha, e que não há a mínima possibilidade disso acontecer lá”.Alguns moradores relatam o desejo de serem contemplados pelo programa de moradias anunciado pela prefeitura, mas encontram dificuldades. Como 10% do total será doado às famílias em situação de risco e os outros 90% serão financiados por bancos, a grande maioria dos moradores, com restrições de acesso à financiamentos, temem não poder pleitear essas casas.
Ao final da tarde, Bruce aproveitou para fazer uma reflexão: “Como Darcy Ribeiro falava que a crise de educação no país não é uma crise, mas um projeto, a situação de moradias em Mariana é o mesmo caso, um projeto. Todo o terreno da cidade tem dois donos, a Igreja e a Mina da Passagem, onde vamos construir?”, questiona.
Nossa reportagem entrou em contato com um funcionário da Companhia Mina da Passagem (CMP) para perguntar sobre a questão de ocupações em terrenos de propriedade da empresa, mas nosso repórter não obteve respostas e foi bloqueado no WhatsApp. Também fizemos contato com o Secretário de Defesa Social, Braz Azevedo, e com a Procuradora Geral do Município, Inêz Nezolda, via assessoria, mas não obtivemos respostas até o fechamento da matéria.