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Nunca tive dificuldades para produzir textos; sempre há o primeiro dia. Hoje é um desses dias malditos, de nímia infertilidade. Há mais de um mês não coloco os pés nas ruas, não sinto o vento acariciar meu rosto suado de caminhar. Bater pernas, entrar nas lojas, bancos e loterias é herança materna. Gosto pela música, idem. Por isso, para minha mãe um pot-pourri de suas músicas preferidas: “Que beijinho doce foi ele quem trouxe de longe pra mim…”. Esta canção aguça a vontade de cantora de mãe em seu canto-balbucio, no processo lento de recuperação em sua batalha pela vida. “Depois que eu beijei ele/ nunca mais amei ninguém…” Mãe, semente a florescer pelo amor eterno, “de amor sem fim”, aponta a foto de pai, na parede e sussurra – meu marido!
Maio, mês das flores, das noivas, de MÃE pra lá, MÃE pra cá. Mãe é tudo isto: soma, divisão, multiplicação, matemática complexa e simples. Somei minhas quarenta e seis primaveras com as oitenta de mãe. A soma das idades é igual a goles generosos nas passagens de sóis, chuvas, invernos e verões; diários de perdas e ganhos de marcas e cicatrizes em pontos claros e obscuros do amor.
“… O meu coração me faz compreender que a vida é tão pequena para tanto amor.” Meu amor exorbitante se alimenta do seu olhar aceso, no aperto da mão esquerda, nos sussurros de sua voz e no desenho breve do seu sorriso. Meu amor filial se engrandece nas viradas dos dias e das noites; amor de outras vidas, imortalizado pelo ciclo cíclico.
“Foi até nos momentos de dor…” Especialmente nos momentos de dor, meu coração espalha ramas de proteção, sobre cada canto do seu corpo. Em quilômetros de idas e voltas pela estrada de rejeitos e quaresmeiras, em trança-trança e ladainhas musicais.
“Índia, sangue tupi/ tens o cheiro da flor…” Meu ser traz amor sublime de mãe para mãe, sem fruto físico do meu ventre. É que esse amor invade todos os pontos e parafusos de minha razão. Amor irretocável de mãe tem cheiro de leite fresco, café passado em bule, broa de fubá e pudim de pão dormido.
“…Estava vestida de noiva, sorrindo e querendo chorar…” Ladeada na foto do porta-retrato por mãe e pai, vestida de branco, o flash capturou o momento exato do nosso sorriso de lágrimas, pulso de emoções e recordações.
Em cada degrau em ardósia da escada, meus pés reverberam passos da infância, adolescência e maturidade. Em cada canto do muro vermelho, nosso gosto similar por cores vibrantes e quentes. Nas portas de vidro, nas pedras da parede do quarto, nos adesivos coloridos dos espelhos das escadas, nas roupas e nos desejos de ir além, no passo da loucura pelo amor, nossa identidade se mistura.
Esta sequência musical marcou a vida de mãe em seus turnos de trabalho no lar. Hoje, vendo sua vontade de cantar, em seus momentos de musicoterapia, “me faz compreender que a vida é tão pequena para tanto amor.”
Em tempo: “de todas as maneiras que há de amar”, experimentemos neste segundo domingo de maio em tempos de combate ao novo coronavírus, nossa mais perfeita maneira de amar com segurança – expressemos nosso amor às mães, protegidos, para protegê-las. No meu caso, este pot-pourri equivale a um buquê.
(*) Andreia Donadon Leal e Mestre em Literatura pela UFV e autora de 16 livros; Membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Presidente da ALACIB-Mariana