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Nunca imaginei viver em isolamento social por meses. Vivenciei trinta e dois dias trancafiada numa clínica em quarto minúsculo, sem acesso a telefone e a redes sociais. Horários fixos para receber medicamentos, alimentação, banho, visitas e passeios terapêuticos. A gente se acostuma; não era para se acostumar, pois tudo pode se dissolver no ar com velocidade de raio. Mas se acostuma! A gente aprende a se reinventar na nova realidade, a criar links, para desvendar novas zonas de convivência. Aquilo que um dia foi prescindível torna-se necessidade absoluta. Aquilo que foi imprescindível, passa, simplesmente passa. Desacelerar, parar, aprender a ouvir o silêncio, a perceber que existe alguém além dos muros, tão isolado quanto eu.
Há realidades mais doídas que as minhas por aí. Consigo no isolamento olhar para além do meu umbigo. Paranoia e depressão não são exclusividades alheias. Desgraça não atinge só o quintal do vizinho. Braço ou perna que faltam em Maria podem faltar em João. Doença que acomete este ou aquele pode chegar até a mim. Telhados de vidro temem chuva de granizo. Aprendemos que telhas de barro se desgastam peremptoriamente com o tempo em todos os telhados. Inverno, verão, primavera ou outono vêm e vão, mostrando passagens efêmeras das estações. O frio que entra no quarto é ludibriado com a mudança de posição da cama. A fome que ora me consumia, era apartada com exercícios de respiração. Mudança de decúbito, eu fazia. Insônia tratada com ansiolíticos, indutores de sono e antipsicóticos. Sobrevivi. Sou sobrevivente de um caminho enxertado de oscilações de humor. Sou sobrevivente de um sistema de saúde colapsado há tempos.
A arte de criar, nesses tempos de internação, nadou em águas profundas do esquecimento e da infertilidade. O isolamento foi duro, cinzento; sem tréguas para momentos de interação e introspecção. Falar de felicidade num ambiente apático, sem cores, sem luzes e sem interações virtuais, foi possível na fala de uma interna que vislumbrou um ambiente pós-caos. “Depois que o sistema parar de colapsar, as clínicas psiquiátricas serão recriadas e reinventadas para a nova realidade”. Quem vai investir em surtados, maníacos, em pessoas com parafusos soltos? Com o novo coronavírus, com a COVID-19, lembro-me dela e das outras. Internos de hospitais psiquiátricos estão mais à margem do que nunca, apesar de acostumados a viver em isolamento severo, emparedados do mundo alheio. Numa internação psiquiátrica, aprende-se a viver na exclusão digital e no isolamento nada alternativo. Não é um pesadelo, mas um caminho labiríntico apreendido e aprendido às duras penas.
Eles se acostumaram, eu tive que me acostumar. No isolamento social parece ser mais simples. A gente poderia se acostumar, sem desespero ou pânico, a se reinventar, aprendendo a usar a tecnologia disponível. Pra quem é da geração pré-digital não é fácil, pois tudo parece ser para ontem, confuso, impregnado de janelas, links, cobranças de respostas imediatas e o diabo a quatro! No entanto, a máquina é que está promovendo o encontro, a comunicação, a cultura e a educação. Ah! Em vez de fazer uma live com um amigo com quem costumava me encontrar, prefiro entediar meu tempo com um interminável game.
EM TEMPO: Projetos de investimento para melhorar as clínicas psiquiátricas? Loucura! Há que aprender a quitar as ervas daninhas das plantações, antes de jogar sementes e adubos. E há que se aprender a ‘quebrar’ protocolos para lidar com doenças da alma. Há inesgotáveis atividades em rede, que poderiam ser usadas em internações psiquiátricas. Somos sobreviventes de um mundo esquecido…
(*) Andreia Donadon Leal e Mestre em Literatura pela UFV e autora de 16 livros; Membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Presidente da ALACIB-Mariana