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Há alguns anos, quando eu ainda exercia o cargo de professor na Universidade Federal de Ouro Preto, tive oportunidade de participar de uma comissão encarregada de elaborar o texto preliminar de revisão da norma brasileira de projeto e construção de estruturas de aço. Em uma das reuniões, nós gastamos talvez umas duas horas discutindo como utilizar as palavras “pode”, “deve” e suas correspondentes negativas, ou seja, “não pode” e “não deve”.
Acredito que muitas pessoas tenderiam a pensar: Mas por que tanto tempo discutindo uma coisa tão banal? Qual a relevância disso? Acontece que nossa responsabilidade era enorme e corríamos dois riscos: engessar demais os procedimentos, impondo nossa visão técnica de todos os aspectos, ou deixar o documento extremamente permissivo, transferindo para o projetista, calculista ou construtor, todas as responsabilidades. Nem uma nem outra alternativa nos era permitida.
Por consenso, estabelecemos uma regra simples. A palavra “pode”, e suas variações, seria utilizada sempre que fosse colocada uma situação como opcional, a critério dos profissionais envolvidos. Por exemplo, “o efeito da temperatura pode ser considerado isoladamente”, indicando a possibilidade de escolha do calculista em analisar esse efeito separadamente ou em conjunto com outras ações. Para a palavra “deve” seriam reservadas as situações em que houvesse uma imposição do tipo “a combinação das ações deve ser feita de forma que possam ser determinados os efeitos mais desfavoráveis para a estrutura”.
Essa dualidade entre possibilidade de escolha e imperiosidade muda radicalmente quando usamos a negativa. “Não pode” representa uma obrigatoriedade, enquanto “não deve” é uma recomendação. Assim, continuando no exemplo da norma brasileira, é estabelecido que “a distância entre a borda de um furo e a extremidade da chapa não pode ser menor que…”. Portanto, não há alternativa, respeitar essa distância mínima é obrigatório. Já nos trechos onde aparece a expressão “não deve”, a escolha fica a critério e risco do projetista ou construtor, dependendo de cada caso particular.
Mas chega de exemplos em linguagem técnica e vamos ao que realmente interessa aqui. Até porque já estou aposentado e sequer exerço a engenharia profissionalmente. Minha “praia” agora é o jornalismo e pretendo aproveitar aqui esses conceitos para algumas observações relacionadas às atitudes das pessoas.
Infelizmente tem se tornado relativamente comum o fato de algumas pessoas extrapolarem o que pensam “poder fazer”, sem medir consequências. Em sentido amplo, uma pessoa “pode” fazer qualquer, ou quase qualquer coisa. Ou seja, se completamente senhor de suas faculdades mentais, um indivíduo tem a opção de escolher suas ações. Também se vê muita gente dizendo que “deveria” fazer determinada coisa, mas a internet caiu, alguma condição não foi satisfeita, ou outra desculpa qualquer. Em resumo, não levamos tão a sério a diferença entre o “pode” e o “deve”.
Exemplificando, eu posso escolher entre compartilhar ou não as tais “fake news”. Se “devo” ou não fazer é uma outra história? Não, as coisas precisam mudar. Eu “não posso”, deliberadamente, repassar uma mensagem, uma informação sabidamente falsa, só porque ela reforça minhas convicções ou minha opinião. E “posso” discordar das opiniões alheias. Aliás, se estou convencido de estar certo, mais do que “posso”, eu “devo” discordar dos que pensam de modo diferente. Mas, seguramente, “não posso” me aproveitar dessa diferença de ideias para rotular pejorativamente o outro, para desqualificar o mensageiro, sem pelo menos considerar a hipótese de que eu esteja errado.
Desde 2018, talvez até um pouco antes, foi estabelecido uma espécie de Tratado de Tordesilhas no Brasil. Embora a divisão não seja territorial, ela tende a marcar, de modo muito forte, duas tendências políticas, dois tipos de pensamento, duas correntes, dois campos que se pretendem completamente distintos, mas que na verdade têm sim uma faixa significativa de superposições, de atenuantes e zonas cinzentas. Este ano, a partir da necessidade de combate ao novo coronavírus, esse embate avançou também para o campo da ciência e da saúde pública, acirrando ânimos e tornando ainda mais tênues as diferenças entre “pode” e “deve”, entre “não pode” e “não deve”.
Enquanto autoridades dizem que devemos cumprir o isolamento social, usar máscaras, adotar hábitos específicos de higiene e cuidados para não amplificar a proliferação do Covid-19, há os que insistem em poder descumprir essas normas, geralmente apelando para seus direitos, seu “poder fazer”. E, na maioria das vezes, esses argumentos são baseados no interesse pessoal de cada um dos que se insurgem, sem levar em consideração os direitos do restante da população.
Não amigo, não amiga. O mundo não se resume ao seu próprio umbigo!
Por outro lado, há aqueles que efetivamente são tolhidos por essas restrições em seus direitos mais elementares, como a garantia de sobrevivência, por exemplo. É óbvio que eles precisam de uma espécie de flexibilização das regras, desde que minimizem o risco de complicar ainda mais uma situação já bastante preocupante por si só. Mas, confirmando, uma vez mais, a confusão estabelecida na interpretação do “pode” e “deve”, do “não pode” e não deve”, existem aqueles que, no conforto de suas residências, na comodidade de suas situações econômicas extremamente particulares, bradam a plenos pulmões pelo absoluto e total lockdown.
Repito: Não amigo, não amiga. O mundo não se resume ao seu próprio umbigo!
Sinceramente não sei se me fiz entender, mas a intenção era apresentar algumas ideias para reflexão. Algo que poderia ser resumido em: Se você “pode” fazer qualquer coisa, pergunte se “deve” fazê-la. E, mesmo se a resposta for positiva, reflita se realmente você “precisa” fazer isso.
(*) Luiz Loureiro, jornalista e editor da Agência Primaz de Comunicação