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É bem provável que os últimos meses não estejam sendo fáceis para ninguém. Além do medo de contrair a COVID-19, outras doenças também corroboram para o adensamento de uma atmosfera sombria que assola o país. Mas dentre todas as que poderiam ser elencadas, chamo a atenção para uma velha conhecida que, por vezes, se destaca ferozmente diante dos nossos olhos, a miséria.
Com a rotina bruscamente alterada, as pessoas têm procurado reorganizar as tarefas cotidianas, e para uma parcela bem significativa da população a incerteza de ter garantida a renda mínima para manter o sustento da casa tem sido o maior de todos os problemas. Desse modo, se a miséria já se fazia presente no Brasil, é inegável que ela agora se avoluma, visto que, com o isolamento social, muitas restrições nos são impostas, evidenciando ainda mais a angústia daqueles que não sabem o que farão para manter o sustento da família. Nesse sentido, entender a miséria como uma doença é fundamental para compreender como ela nos assola, mesmo que o seu prato ou o meu esteja cheio.
No sentido denotativo, o termo miséria pode ser definido como: 1. Estado deplorável. 2. Indigência, penúria. 3. Avareza, sovinice. 4. Bagatela, ninharia. 5. Ação vil. (AURÉLIO, 2010, p.509.). E é a partir dessas acepções que estabeleço aqui dois pontos a serem discutidos, sendo o primeiro a miséria como a condição daquele que não obtém o mínimo para o seu sustento; e o segundo como a condição daquele que age sobre o primeiro. É, sobretudo, a respeito da suposta ação misericordiosa que proponho a reflexão sugerida já no título deste texto.
Para tanto, trago à luz uma voz que considero imprescindível para a reflexão, a de Carolina Maria de Jesus. Em seu Quarto de despejo: diário de uma favelada, a autora trata insistentemente sobre o tema da fome e dos seus desdobramentos a partir da rotina vivida na extinta favela do Canindé, às margens do Tietê, em SP, nas décadas de 1950 e 1960. Essa mulher negra, nascida no município de Sacramento, MG, mãe solteira de três filhos, considerava que a escravidão vivida por ela e por todos os que compartilhavam da mesma rotina árdua e incerta era, sem dúvida, a fome. E essa percepção sobre a realidade revela muito sobre o Brasil de antes e de agora.
Sem dúvida, essa catadora de papel que ousou escrever, tendo cursado apenas até o 3º ano do Ensino Fundamental, é, de algum modo, a voz dos invisíveis do seu tempo e dos de hoje. E podem ser chamados de invisíveis porque estão justamente no quarto de despejo, ou seja, naquele espaço destinado às coisas inúteis ou descartáveis. Porém, há momentos em que essas pessoas que a sociedade mantém doentes são surpreendidas como atrações em uma arena. E, por resultado, a fome é duplamente saciada, sendo para os primeiros uma forma de camuflá-la momentaneamente, e, para os segundos, o aumento da fartura. Isso porque a ação destes se dá mediante pagamento à vista. E aproveitando as possibilidades linguísticas, afirma-se com todas as letras: à vista de todos.
Nesse momento em que toda a sociedade se vê diante da urgência de lutar em favor da saúde, prezar pelo bem coletivo é também saciar a fome de quem está em situação de vulnerabilidade. É claro que esta é uma necessidade já conhecida da população, mas, nesses dias em que a pandemia nos assola, eventos que por vezes acontecem sem provocar grandes alardes podem ferir mais os nossos olhos. Ações difíceis de serem vistas como legítimas, pois constituem a oportunidade que apraz aos desejos de fartura daquele que oferta. Dito de outro modo, enquanto a mão esquerda oferece o alimento, a direita que seria necessária ao apoio e acolhimento do outro é muitas vezes usada para o registro da forjada caridade. Portanto, autopromoção em jogo. Sem dúvida, vivemos dias muito difíceis sobre os quais urge mudança de perspectiva, em que a alteridade seja considerada como fundamental para uma sociedade mais humana.
(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG e membro efetivo da ALACIB-Mariana