A experiência das periferias de Mariana diante da crise global da Covid-19

Os primeiros 100 dias das periferias de Mariana durante a pandemia de Covid-19

Compartilhe:

[wpusb layout="rounded" items="facebook, twitter, whatsapp, share"]
Ação policial na região da Vila Esperança - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

As diversas medidas de combate e contenção dos contágios pelo Coronavírus atingem as regiões da cidade de formas diferentes. Acesso à água, possibilidade de trabalhar em casa, transporte individualizado, conforto e espaço para conseguir se manter isolado, são privilégios que nem sempre chegam às regiões mais afastadas do centro. Após 100 dias da primeira notificação do vírus em Mariana, fica clara a incompatibilidade entre as recomendações dos órgãos de saúde para evitar novos contágios com a realidade das periferias da cidade.

*** Continua depois da publicidade ***

*** 

Moradia

Na reportagem do dia 26 de abril, visitamos a Vila Esperança, antiga Vila Serrinha, ocupação próxima ao Bairro Santa Rita de Cássia, onde pudemos conhecer a Casa de Seu Zé e Dona Amélia. O pequeno imóvel é inversamente proporcional à importância dele para a comunidade. O local é utilizado como ponto de referência e encontro de moradores que receberam nos últimos 100 dias, ao menos quatro visitas de autoridades policiais em operações de defesa de posse em favor da Mina da Passagem.

Uma das frases mais repetidas nos últimos 100 dias é: “Fique em casa”. No dia 28 de abril, contamos a história de Firmo Martins, um senhor de 68 anos que teve seu barraco de um cômodo derrubado durante uma das ações de “Desforço Imediato pela proprietária do terreno”. Na segunda ação dessa natureza durante a pandemia, ocorrida no dia 12 de maio, Firmo estava novamente com seu barraco de pé, e assim permaneceu.

Firmo em frente à sua nova casa - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Trabalho

Nas periferias, de um modo geral a maneira de organização social é comunitária, diferente dos núcleos familiares para os quais as medidas de contenção da Covid-19 foram pensadas. Renata Crispim é mãe de cinco filhos e varredora, ela precisou continuar no trabalho mesmo com a pandemia. Com creches e escolas fechadas, as crianças ficam em casa com o marido Antônio Orlando que trabalha em uma das empreiteiras responsáveis pelas obras do Novo Bento. Atualmente, Antônio está afastado devido às restrições e protocolos do Coronavírus adotados pelo município. O casal consegue se dividir nos cuidados com as crianças, mas deixar os filhos em casas de vizinhos ou parentes é uma realidade comum em casos onde os pais continuam trabalhando.

A distância entre casa e trabalho é outro grande fator de exposição do cidadão periférico, aglomerações de toda espécie e exposições ao vírus são recorrentes. Renata se diz preocupada com a situação do transporte público, “prefiro descer pra trabalhar a pé, tem dias que subo a pé também, tenho medo das aglomerações nos ônibus e às vezes a gente fica até uma hora no ponto esperando”, afirma.

Antônio Orlando, além de trabalhar na reconstrução do Novo Bento, é B-Boy, professor e um dos coordenadores do projeto Fala Favela, Toninho B-boy como também é conhecido, ajuda na organização de lives do Fala Favela.TV, projeto que surgiu em substituição aos eventos promovidos pelo grupo nas periferias de Ouro preto e Mariana. Uma das maiores preocupações de Toninho é a conscientização da sua comunidade, outra é ajudar na divulgação e lançamento de trabalhos de Mc’s e DJ’s da região.

Toninho B-Boy - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Distanciamento Social

Zé Maria é segurança e está desempregado, tem 62 anos e afirma ter muito medo do Coronavírus, para ele “tinha que testar mais, ter um controle melhor né? Aqui é complicado, olha a criançada soltando pipa, ali tá todo mundo sem máscara”, afirma.

Apesar dos esforços da administração municipal em criar canais de comunicação para combater encontros e festas, além de fiscalizar abusos durante a pandemia, moradores reclamam que o serviço é insuficiente para impedir aglomerações em bairros mais afastados.

Zé Maria, segurança - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Assistência Social

O mês de junho é o último em que as distribuições das cestas básicas estão confirmadas pela prefeitura. O programa emergencial de segurança alimentar distribui uma cesta básica por família que tenha pelo menos um membro como estudante da rede municipal de ensino.  Até o momento não há previsão de prorrogação do benefício, nem do retorno às aulas.

A família de Renata e Antônio têm direito a uma cesta básica, apesar de todos os cinco filhos frequentarem a rede municipal de ensino. Já Priscila Ferreira, estudante e moradora da Prainha, têm aulas no Bairro Cabanas e ainda não pegou nenhuma cesta. A jovem afirma que a dificuldade de deslocamento, as dúvidas sobre o direito ou não ao benefício e a necessidade de retirar a cesta na escola onde é matriculada, dificultou seu acesso.

Priscila Ferreira, estudante - Foto: Mariana Paes/Agência Primaz

Racismo estrutural

As populações periféricas no Brasil, são em sua grande maioria composta por pessoas negras e com sérias limitações sociais como emprego e renda, saúde, educação, moradia, transporte, lazer e cultura. 

Nesse período, percebemos avanços e limitações nas formas de combate à Covid-19 nas periferias de Mariana. Silvio Almeida, filósofo e presidente da Fundação Luiz Gama, em entrevista para o programa Roda Viva de ontem (22), afirma: “Hoje no período de uma pandemia em que nós estamos percebendo que os maiores afetados, as pessoas que estão morrendo são as pessoas negras, e essas pessoas não estão morrendo, porque o vírus faz uma escolha racial, as pessoas estão morrendo, porque os sistemas de saúde não tem condições de lidar com a demanda provocada pela doença. Uma diminuição no papel dos sistemas públicos de saúde é mortal para a população negra”.

Por isso, para o efetivo enfrentamento da pandemia e uma real mudança social, acreditamos na transparência e no fortalecimento do sistema público de saúde, em medidas de melhoria do bem estar e garantias de direitos como a via mais segura para um efetivo avanço de discussões e medidas efetivas de controle da pandemia, principalmente nas populações e regiões mais fragilizadas da sociedade.

Veja mais do Especial 100 dias de Covid-19 em Mariana