O clássico dos milhões: uma rivalidade à parte

Dica: Ler essa crônica ao som de: “Vasco x Flamengo – Caju e Castanha” e “O Campeão – Neguinho da Beija-Flor”.

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A rivalidade entre Vasco e Flamengo é muito mais velha do que eu poderia imaginar. Começou no final do século XIX, ainda com os dois clubes em formação. Os primeiros confrontos aconteceram com os esportes de regata, como o remo, por exemplo. Marcado por confrontos sempre muito acirrados, na Liga Carioca, o Flamengo tem três título a mais que o Vasco, contabilizando 49 para o primeiro e 46 para o segundo, respectivamente. No ano de 1916, já no século XX, teve início a rivalidade futebolística.

Com o futebol, Vasco e Flamengo tornaram-se mais que clubes profissionais do Rio. Embalados por toda a rivalidade presente desde os tempos do remo, nasceu o “clássico dos milhões”, nome dado pelo sucesso de bilheteria. Se o jogo fosse no Maracanã então, sinônimo de casa cheia. No início, com os ingressos a preços populares, a geral e a arquibancada ficavam tomadas por torcedores, dando lugar ao fanatismo que passaria de geração a geração. Detalhe: a “geral” era o espaço mais baixo e próximo do campo, nela os ingressos eram mais baratos e as pessoas podiam assistir aos jogos em pé.

O tempo e o fanatismo serviram de tempero para o caldeirão da rivalidade, criando um clima hostil para o clássico. Apesar de os torcedores ainda comparecerem aos estádios, as tradicionais torcidas organizadas começaram a levar o confronto tão a sério que as brigas começaram a ser comuns dentro e fora dos estádios. Contudo, o resto da grande massa torcedora continua contra a briga e a violência – e torcedores de ambos os times podem conviver em harmonia, mas não sem uma provação saudável, seguida de um sorriso debochado. É extremamente comum um torcedor do Vasco ou Flamengo torcer para a derrota do adversário – e, quando ela vem, está sempre acompanhada de uma provocação, é inevitável. 

Com toda essa construção da rivalidade, soa quase um crime quando algum filho, irmão, afilhado ou ente querido escolhe torcer para o seu time rival. E é nesse momento que o amor, o respeito e os laços familiares são colocados à prova, quando o limite do torcedor é testado diante do amor fraternal. Sobre isso tenho algumas considerações: dei um desgosto profundo a um torcedor do Clube de Regatas do Flamengo, mas, como dizem os mais sábios, há males que vêm para o bem. Flamenguistas cantam – às vezes aos prantos – o hino de seu clube, onde afirmam que teriam “um desgosto profundo se faltasse o Flamengo no mundo”. Só que essa pode não ser a única insatisfação na vida deles e essa é a história que vou contar. 

Durante anos, no banheiro social da casa da minha avó, descansava empoeirado, em cima do espelho, um livro de Armando Nogueira intitulado “A Ginga e o Jogo”. Em algum momento da minha adolescência, tomei a iniciativa de pegá-lo para ler. Na contracapa, escrito à mão, havia o seguinte recado: “Este livro pertence a Anselmo.” Para mim ele responde pelo nome de Dindo – afinal, todos os ídolos recebem um apelido carinhoso como forma de aproximação por parte dos fãs. Um caso bem conhecido é o de Arthur Antunes Coimbra, carinhosamente chamado de Zico ou Galinho de Quintino. 

Além de ser meu padrinho, Dindo foi a pessoa que me apresentou o maior vício que carrego e vou carregar por toda a minha vida: o futebol. Passei minha infância e adolescência acompanhando-o em todos os times que ele jogava: Barreira, Panelinha, Bonsucesso, Cirrose, todos os clubes de várzea da cidade de Saquarema, interior do Rio de Janeiro. Enquanto Dindo realizava jogadas e dribles, dentro de mim despertava um sentimento único. 

Quando virei um adepto do esporte mais popular do Brasil, e possivelmente do mundo, meu maior sonho passou a ser jogador de futebol. Aos sete anos de idade, comecei a me aventurar nas quatro linhas: fui lateral direito, atacante, meio campo e, por fim, virei zagueiro – como o Dindo, claro, que era o zagueiro mais clássico e disputado da região. 

Alto, forte e raçudo, Dindo dominava a parte defensiva como costumava fazer Mozer, zagueiro do Flamengo nos anos 80. Além disso, era o rei das jogadas aéreas. Na defesa, isolava as bolas para qualquer lado, afastando o perigo. No ataque, a única certeza que havia era a de que a bola iria beijar rede, arrancando os gritos de gol. Comigo foi diferente. Apesar de gostar de jogar, nunca me dei muito bem com a bola no pé. Com o passar do tempo, e sem o destaque necessário, minha carreira chegou ao fim. Me aposentei dos gramados e troquei o meião e a chuteira por caneta e papel. Com o sucesso obtido nas salas de aula, investi na carreira de jornalista. É que, finalizado o ensino médio, eu precisava escolher uma profissão a qual iria me dedicar a vida inteira. E ela tinha que estar relacionada ao maior espetáculo da Terra. No momento em que me senti mais perdido, lá estava o Dindo me direcionando, mesmo sem querer. Terminado o livro de Armando Nogueira, eu sabia exatamente o que queria fazer.

Anselmo da Silva Santos é muito mais que um padrinho para mim. É pai, amigo, torcedor, ídolo e, como um bom adepto do futebol, não perde um jogo sequer do rubro negro carioca. Mas o futebol é uma caixinha de surpresas, emoção que nunca acaba. E no Rio, onde o maior rival do Flamengo é o Vasco, eu dei um desgosto profundo a um torcedor do Clube de Regatas do Flamengo: sou vascaíno e, com isso, ensinei ao Dindo que é possível amar incondicionalmente um rival. Nunca consegui ter raiva do Flamengo. Assim como cantamos na torcida pelo Vasco, o Dindo é minha vida, minha história e o meu primeiro amigo.

(*) Lucas Santos é jornalista, graduado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

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