Teoria comportamental

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Estamos no ano de 2002. O Brasil enfrenta uma crise econômica, o dólar passa a valer 3 reais e providências precisam ser tomadas no âmbito da gestão pública. O jornalista Tim Lopes, da Rede Globo de Televisão, é assassinado no Rio de Janeiro enquanto realizava uma reportagem sobre os bailes funks cariocas. Morre, também no Rio, o cantor e compositor Claudinho, eternizado por seus raps ao lado de Buchecha. Na cidade mineira de Uberaba, parte também o médium Chico Xavier, em decorrência de um problema cardíaco. O mundo parecia sacudir em sucessivas turbulências. Os Estados Unidos da América declaram guerra ao grupo terrorista Al Qaeda, liderado por Sadam Hussein, e também aos países do Oriente Médio, o Irã, o Iraque e o Afeganistão. Na Colômbia, as Farc dominam e assustam as pessoas em lugares diversos.

Um ano. Doze meses. Trezentos e sessenta e cinco dias. Poucas pessoas se lembram dos dramas vividos há exatos 17 anos. Pode ser que a memória de muitas pessoas, em um mecanismo de defesa, tenha jogado as lembranças ruins numa espécie de lixeira mental. Ou que elas tenham sido apagadas por outras lembranças. 

A teoria comportamental de Daniel Kahneman e Amos Tversky resulta exatamente de investigações sobre as falhas cognitivas no processo de memorização e tomada de decisão. Essas falhas refletem o que eles chamam de heurística mental da disponibilidade, ou seja, a gama de atalhos mentais e pequenas regras que carregamos por aí, relegando fatos negativos aos labirintos ocultos da mente. O sujeito opta, assim, por preservar somente aqueles acontecimentos de caráter mais positivo ou ameno.

Boas recordações, portanto, permanecem frescas no HD neurológico de todos os brasileiros. Para alguns, pode ter sido a primeira vez em que Luís Inácio Lula da Silva subiu à Presidente da República. Para outros, o momento em que o Brasil tornou-se, pela quinta vez, campeão mundial de futebol – ah o penta… Parece que foi ontem!

Mas o Brasil estava desacreditado. Depois de uma campanha “meia boca” nas eliminatórias da Copa do Mundo, com derrotas para as seleções de Bolívia, Equador e Paraguai – e quatro técnicos com passagens curtas pela seleção canarinho, a saber: Vanderlei Luxemburgo, Candinho, Emerson Leão e Luís Felipe Scolari – chega a convocação. Juninho Pernambucano, Djalminha e Romário fora da Copa. Desespero, raiva e descrença definiam o sentimento de todos os torcedores. Mas os brasileiros constituem um povo diferente. 

Mesmo sem ter conhecimento sobre aquilo que Anderson Polga, Roque Júnior e Kleberson (um jovem meia do Atlético Paranaense) estavam fazendo no Japão com a delegação – bastou um jogo da seleção para que a confiança aumentasse e a esperança invadisse o coração da torcida. Aconteceu. Brasil 2 a 1 na Turquia. O resto da Copa é história, uma linda história guardada a sete chaves no coração.  

Lembro bem daquela Copa. A primeira que tive o prazer de assistir e acompanhar. Jogos que começavam antes do café da manhã – ou depois do início da madrugada. Naquele tempo, a cidade de Saquarema não era só um destino turístico no litoral do Rio de Janeiro. Era lar. Suas praias e a tranquilidade traziam paz a um peito ansioso que, com apenas 6 anos de idade, já respirava futebol.

As conversas nos lugares em que o esporte popular era o assunto do dia começavam e terminavam da mesma forma: 

– Como que não leva o Romário para a Copa, pô?! O baixinho está voando! Ronaldo acabou de voltar de uma cirurgia no joelho, já vi esse filme. Repeteco da Copa de 98.

– Vamos ver, né?! Tudo bem que foi estreia e que pegamos a Turquia, mas ganhamos de 2 a 1. Vai que dá certo…

E foi assim durante toda a Copa, jogo por jogo. Vencíamos, belas atuações individuais e coletivas, mas a incerteza permanecia. Como quando alguém espera dar errado para dizer “Eu avisei!”. 

O colégio azul e branco – com o nome pintado no muro em letras garrafais, CASA ESCOLA CORUJINHA – guardou crianças aflitas durante todo o mês de junho. Em dia de jogo do Brasil não havia aula, mas o pátio cimentado, com uma enorme amendoeira no meio, parecia o Maracanã lotado em dia de jogo. Foi assim em todas as partidas nos dias de semana. Já aos sábados e domingos a diversão ficava por conta da família. Ruas pintadas, bandeira e tinta guache no rosto. Quanto mais avançava a seleção na Copa, mais empolgados e confiantes ficavam os torcedores, até que chegamos às quartas de final. A partir daí, sabíamos que os jogos seriam marcantes e inesquecíveis – tanto em caso de vitória ou de derrota. 

 Às 3 horas da manhã do dia 21 de junho, Brasil e Inglaterra se enfrentavam. Logo no primeiro tempo, o lendário atacante inglês Michael Owen abriu o placar. Naquele momento a boca secou, bateu um frio na espinha e o “Eu avisei” escorregou pelo canto da boca, deixando um gosto amargo. Mas o futebol é uma caixinha de surpresas – frase clichê, mas tão acertada em tantos momentos. Foi nos acréscimos, ainda do primeiro tempo, que Ronaldinho Gaúcho fez aquela jogada genial, tocando para Rivaldo marcar. 

Depois veio a segunda etapa, iniciada com aquele jogo empatado. A partida virou um Deus nos acuda, com o jogo truncado e os atletas cheios de vontade de gol. Falta para o Brasil quase do meio campo. Era uma bola para cruzar na área. Como num passe de mágica, Ronaldinho Gaúcho, carinhosamente apelidado de “bruxo” pelos torcedores, chuta e faz a bola morrer direto no fundo da rede. Era o gás que os brasileiros precisavam. A energia do Penta seguia viva. 

Na semifinal, dia 26 de junho de 2002, o pequeno Lucas completava 7 anos, com direito à festa e tudo. Em um jogo marcado por nervosismo e sustos, o Brasil venceu com um placar mínimo de um a zero, com gol de Ronaldo, aquele mesmo, o fenômeno. O grande lance daquele jogo foi a ousadia de Denílson, que encarou cinco jogadores turcos de uma só vez. O peito do torcedor menos jovem até aperta de saudade porque faz lembrar Mané Garrincha, com seus dribles de perna torta. Com o fim da partida, é hora de comemorar. Meu presente foi estar na final da Copa do Mundo. A cereja do bolo. 

Jogo de final nunca é fácil. É batalha dura para os times que chegaram até ali. E naquela final estavam as duas melhores seleções de futebol do mundo: Brasil e Alemanha. O melhor ataque enfrentava a melhor defesa. Naquela época ainda não dava pra imaginar que um dia – num futuro distante – existiria um 7 a 1 contra o Brasil em sua própria casa. Menos ainda que o goleiro da Seleção Alemã, adversária do Brasil, seria considerado o melhor jogador da Copa. Mas naquele tempo o Sr. Oliver Kahn também não poderia imaginar que teria de dar conta de um Ronaldo inspirado, com tanta sede de vitória. E não deu. 

Em uma atuação espetacular dos 3 erres – Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho, acompanhados de Kleberson (aquele mesmo, contestado pelos torcedores quando da divulgação da seleção convocada) –, o Brasil venceu por 2 a 0 e calou todos aqueles que criticaram e repudiaram os nomes escolhidos para disputar o que viria a se transformar no pentacampeonato canarinho. 

Com a conquista do título, o Brasil voltou a sorrir. O 2002 ficou na história como o ano do penta. Como Nelson Rodrigues disse em 1970, o país viveu “um carnaval fora de época”. A imagem de Vampeta dando cambalhotas no Palácio do Planalto, ao lado do então presidente Fernando Henrique Cardoso, ficou para sempre na cabeça de todos os brasileiros, em especial dos fãs de futebol. 

Naquele dia, lá no Japão, não foi só o Cafu, capitão do time, que ergueu aquela taça. O Brasil inteiro estava com ele, colocando novamente o futebol moleque no topo do mundo.

(*) Lucas Santos é jornalista graduado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

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