Cartas pra Mãe - Esquina Liberdade

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Essa semana foi uma das mais frias do ano. Desses frios doídos que parecem invadir o corpo da gente até chegar bem lá nos ossos, sabe como? Nem a meia de tricô que a senhora teceu pra mim tá adiantando, acredita?

Em uma dessas noites, fui desenhar no vapor que se formou na janela, igual a gente fazia quando eu era pequena. Acho que escrevi “Fora Bozo” ou algo do tipo. Mas aí, enquanto olhava o vai e vem das pessoas, vi um senhor dormindo na calçada da sapataria da esquina.

Ao seu lado, estavam uma sacola preta, um papelão dobrado e uma garrafinha de água. Ele não deve ter nem 50 anos, mas seu rosto e sua postura fazem com que pareça um velho, encolhido naquele cantinho.

Ninguém para pra conversar com ele. Quase ninguém repara naquele senhor que dorme apoiando a cabeça em um degrau, fazendo malabarismo para que o cobertor cinza consiga tampar todo o seu corpo. Acho que estavam uns seis graus lá fora, Mãe.

Ninguém sabe o seu nome. João? Eduardo? Jesus? Para muitos, esse senhor nem nasceu: não tem documento, nem assina com o polegar direito. É só uma das tantas e tantas pessoas em situação de rua pela cidade.

Dias atrás, a Bia Doria – a esposa do João Doria, aquele que anda sempre com um mocassim e cashmere, sabe qual? –Bem, ela andou dizendo que a rua é um atrativo, que as pessoas que estão nessa condição de extrema vulnerabilidade escolheram o seu próprio destino. E não é pra dar marmita, nem levar um cobertor, Mãe. Porque, senão, eles se acostumam com a boa vida. É mole?

Uma moça (que insistiu em desobedecer a Dona Bia) se aproximou do senhor com um copo descartável. Ao perceber que estava quentinho, ele chegou o copo bem perto do seu rosto, pra aproveitar o calor ao máximo. Certamente, sabia que duraria pouco e logo tudo estaria frio outra vez.

Deitou ao lado do copo. A sua pose quase infantil contrasta com o cabelo já branco e os pés cascudos. Será que ele dormia assim quando era menino? Será que teve uma mãe, como a senhora, para cobrir os seus pés em dias de chuva? Será que sonhou em ser médico, jogador de futebol, cabeleireiro ou político? Ou será que a Bia Doria está certa e ele intuitivamente já via em sonhos a calçada da esquina que seria a sua morada?

Na porta do prédio verde, debaixo do letreiro “LIBERDADE”, dorme o senhor – cativo em um país assustadoramente desigual e tão pouco empático como a Dona Bia. Como disse o mestre Manoel, ‘essas coisas me mudam para cisco’: pequeneiam.

Benção,

J.

(*) Jamylle Mol é jornalista e marianense

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