O charme antigo do trem de ferro
“A estrada de ferro passava do outro lado do rio. Do engenho nós ouvíamos o trem apitar, e fazia-se de sua passagem uma espécie de relógio de todas as atividades: antes do trem das dez e depois do trem das duas”. (José Lins do Rego, “Menino de engenho”)
“O trem era para mim uma novidade. Eu ficava na janela do vagão a olhar os matos correndo, os postes do telégrafo, e os fios baixando e subindo. Quando chegava numa estação, ainda mais se aguçava a minha curiosidade”. (Idem, ibidem)
- Danilo Gomes
- 21/07/2020
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No meio do tiroteio da guerrilha da política e do tradicional sectarismo ideológico, com grossa fuzilaria pra todo lado, as ditas grandes revistas semanais costumam trazer matérias interessantes. Por exemplo, na edição de 15-7-2020 a “Veja” enfoca o mais moderno trem-bala do Japão, o “dernier cri” em veículos ferroviários.
Que trem é esse, sô?, como diria o mineiro, curioso. É trem de muita sustança, mineiro. Trata-se do N 700 S (parece nome de planeta recém-descoberto pela Nasa), tido como “o mais seguro e mais veloz” do mundo. Essas máquinas de alta tecnologia dispensam até a obsoleta figura do maquinista. Pra quê maquinista? A possante engenhoca de grande porte parece um robô-gigante, é branca, brancona, e feia, isto é, sem graça, sem apelo estético. Parece uma imensa lagarta branca – com todo o respeito. Mas é coisa de alta tecnologia, eficiente, operacional. Anda a 360 km/h! Um espanto para um cronista velhote dos tempos do bonde e do ônibus-jardineira. Homessa: 360 km/h! Mais rápido que o trem-bala da China de Xi-Jinping. Pois esse tal N 700 S (o S é de supremo, segundo a Central Japan Railway), de linhas aerodinâmicas, resiste até a terremotos. Conta com o mais sofisticado e eficaz sistema de controle automático e frenagem e é movido a bateria de lítio.
Tudo bem, muito que bem. Parabéns aos japoneses e vida longa ao Imperador Naruhito!
Mas meu encantamento é pelo velho trem de ferro das estradas brasileiras, a maria-fumaça que apitava com alarde e soltava fumaça, bebendo água e fazendo baldeação ali e acolá. Tinha lá o seu charme. Essa locomotiva antiga era de fabricação inglesa e foi trazida ao Brasil, nos seus primórdios, pelo culto Imperador D. Pedro II, amante das novidades, como a fotografia e o telefone de Graham Bell, com quem ele conversou nos Estados Unidos, se não me engano em 1876.
No meu tempo de menino viajei várias vezes nos trens da EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil), indo de Mariana para BH (com baldeação em Burnier) ou para as fazendas de amigos de meus pais. O trem deixava a plataforma às cinco horas da manhã, às vezes sob a neblina do inverno. Além do apito estridente a máquina ostentava um pequeno sino dourado que badalava alegremente. O guarda-pó branco (defesa contra as fagulhas de carvão quente) era de uso geral. Quando íamos de férias para as fazendas, o percurso era completado por cavalos de manso trote, o que era para nós um ingrediente a mais na aventura. Há poesia nesses vetustos trens, a locomotiva puxando os vagões de passageiros (um deles vagão-restaurante) e os furgões de carga.
***
O saudoso poeta Luiz Carlos de Oliveira Cerqueira era encantado por trens de ferro. Na infância, morou perto de uma estação, lá no Estado do Rio de Janeiro. Eu conversava muito com ele sobre esse tema que nos seduzia. O Cerqueira dedicou poemas ao trem, como o “Quintilhas nº 10, op. 318”, de que destaco este trecho:
“Ah, já ouço o apito do meu trem de ferro.
De calças curtas eu brincava na estação,
tinha de quatro a cinco anos, se não erro.
Feliz lembrança a que tanto me aferro.
Pena que o trem partiu e retornou mais não”.
No seu derradeiro livro, intitulado “Nas sombras do meu solar” (lírico título), o Cerqueira estampou poemas inspirados pelo nosso querido veículo, tais como “Trem de ferro”, “Poema nº 221, op. 247, nº 1” e “Quadras nº 34, op. 259 (Maria-fumaça)”.
Outro poeta, o mineiro/carioca Paulo Mendes Campos, na sua crônica (na verdade, um prosoema) “Trem de ferro”, deixa a nostalgia correr solta como o vento nas várzeas onde avançava a traquitana mágica. Quando menino, ele morou na cidade mineira de D. Silvério, onde seu pai, Dr. Mário, trabalhou como médico. Convivi com o Dr. Mário Mendes Campos, médico e escritor, em Belo Horizonte, na Livraria Itatiaia, que ele frequentava assiduamente. Está aí o escritor Pedro Rogério Moreira, que não me deixa mentir. Filho do escritor Vivaldi Moreira (Presidente Perpétuo da Academia Mineira de Letras) e sobrinho do poeta e livreiro Édison Moreira, Pedro Rogério também se tornou amigo do Dr. Mário, ensaísta ilustre, especialista em Literatura Hispano-Americana e membro da Academia Mineira de Letras.
Eis alguns trechos da crônica de Paulo Mendes Campos:
“A infância era ferroviária. Meninos de meu tempo iam ser maquinistas. Pé descalço no calor do trilho. (…) Entro no túnel com o sobressalto musical de quem começa um improviso. A penumbra, menos inteligível, mais alusiva que a luz. Divaga nessas entranhas um divertimento perverso de túmulo. Mas a boca de saída berra pelo sol. (…) Olhava carregador, operário, menino do pastel. Pasmado, erguia a cara para o chefe do trem. O sino repicava à entrada do monstro. Passava um tempão espiando o desvio automático. Me falava de outro mundo o pica-pau do telégrafo. Trocaria minhas moedas pela lanterna que o gigante de impermeável esburacado carregava na tarde de aguaceiro. (…) Sentir na pele a locomotiva. Sujar-me de graxa e carvão. Fui foguista. Guarita. Engate. Luz na curva. Sem saber até hoje decompor esse sortilégio. Quase consumido, subo os vagões sem dizer nada, encantado ainda”.
Encantados também ficamos todos os que, na infância e na adolescência, tivemos a ventura (e a aventura) de viajar em trem de ferro. É uma encantação, como bem diria a poeta Lina Tamega Peixoto.
Ficou famoso o poema de Ascenso Ferreira, intitulado “Trem de Alagoas”, que, segundo o mestre cronista Edmilson Caminha (que consultei), está no livro “Poemas de Ascenso Ferreira”, publicado em Recife pela Nordestal Editora,1981. No ritmo da locomotiva, Ascenso Ferreira faz o balanço ferroviário, se me não falha a memória:
“Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
com vontade de chegar”.
O trem também sacoleja e apita nas páginas de Eça de Queiroz. Está lá, na obra-prima que é “A cidade e as serras”:
“ O trem arquejava, rompendo o vasto vento da planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?… Não!” (…) A sineta badalava, moribunda. De novo fendíamos a noite e a borrasca”.
Esse trem levava Jacinto de Paris à bucólica Tormes, em Portugal, atravessando a Espanha, em companhia do fraternal amigo Zé Fernandes de Noronha e Sandes, da vila de Guiães.
Não é discreto o charme do trem; pelo contrário, ele é barulhento e às vezes espalhafatoso, mas sua aparência tem um quê de romântico, de idílico fin-de-siècle XIX. É o caso dos trens que partiam de São Petersburgo, no inverno, com personagens de Leon Tolstoi; do elegante Expresso do Oriente do romance policial de Agatha Christie; do trem que participou da volta ao mundo em 80 dias, no clássico romance de Jules Verne, de que destaco este lance: “Algum tempo depois, Phileas Foog, sir Francis Cromarty e Passepartout estavam instalados em um confortável vagão de trem, no qual a Sra. Aouda ocupava o lugar de honra, a caminho de Benares”.
Sim, um charme barulhento, mas, de qualquer forma, um charme, uma novidade fumacenta, às vezes correndo rente a tropas e boiadas, como víamos nos filmes de far-west.
***
Mas voltemos no tempo, aqui no Brasil, deixando em paz Tolstoi, Jules Verne, Agatha Christie e Eça de Queiroz, com seu Jacinto de Tormes a gozar dos prazeres rurais da pachorrenta província lusitana.
Em Mariana, nos fins da década de 1940 e inícios de 1950, entro no trem que nos levará à fazenda São João, de Sr. Nico Mol, ou à fazenda São José, de D. Zinha Mol Rôla, ou ainda à fazenda de Sr. Bilú de Castro, no Crasto (assim mesmo, Crasto). São cinco horas da manhã na estação inaugurada em 1914. A máquina bufa e apita; seu pequeno sino dourado toca, tilinta. A composição vai partir. Será uma simples viagem, mas iluminada por magia e encantamento, até de aventura.
Na fazenda, seja ela qual for, vou andar de carro de boi, beber garapa de cana (ao natural, pois ainda não havia geladeira), correr no curral e no paiol, ir ao moinho, comer queijo, pão de ló e broa, andar pelo monjolo e pelo engenho de rapaduras e doçaria, com destaque para a inefável goiabada-cascão. E vou zanzar pela vasta cozinha com seus olores de boa comida, com pitéus como lombo de porco ou frango ao molho pardo, com angu (faço questão do angu, que, aliás, ali não falta).
E, à boca da noite, depois do jantar, vou, menino de calça curta, escutar conversas de assombrações, almas penadas, assustadores ruídos de correntes na antiga senzala, sentado ao redor da fogueira tribal. Na fazenda de Sr. Nico Mol, João Cassiano, um velho empregado, afrodescendente, é o maior contador dessas histórias, com seus olhos arregalados e sua voz cava de cemitérios, de catacumbas sombrias… É um mestre em meter medo noturno nos ouvintes, enquanto a fogueira estala, perto do curral. Um de seus casos é o das três gameleiras, grandes árvores mal-assombradas, que todos evitavam topar depois do cair da noite, cruz-credo, esconjuro, muita gente já viu estranhas coisas noturnas naquela curva da estrada para Barra Longa….
Vou dormir com um medo danado, enquanto, em certas noites, a chuva bate nas vidraças das grandes janelas coloniais, naqueles ermos de fraca luz elétrica e muitos lampiões de querosene.
Uma encantação, Lina, uma encantação…
(*) Danilo Gomes é marianense, escritor, advogado e jornalista, membro da Academia Mineira de Letras e cidadão honorário de Belo Horizonte
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