Cartas pra Mãe - Números não têm alma
- Jamylle Mol (*)
- 23/07/2020
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“O Brasil tem mais de 13 milhões de miseráveis”.
“70 crianças foram assassinadas pela PM nos últimos 4 anos”.
“Mais de 80 mil pessoas morreram por Coronavírus no Brasil”.
Mãe,
O que a senhora sente quando escuta essas três manchetes que estamparam (ou deveriam ter estampado) a capa dos jornais brasileiros?
Provavelmente, se assuste, sinta aquele nó na garganta e faça uma oração pros seus santos. Mas, não demora muito tempo, o pensamento já voou pra outros lados, e a senhora se esquece dos números sólidos e tristes.
Afinal, esses números se repetem, dia após dia. Ano após ano. Não causam mais tanta surpresa. “Quantos morreram de coronavírus hoje?”, “Olha lá, a PM matou inocentes na favela outra vez”, “Tem tanta gente passando fome no país, que tristeza”.
Mas e se eu te contar, Mãe, a história do Ezequiel, menino de 7 anos, que chorou de emoção quando, há bem pouco tempo, tomou um banho quente pela primeira vez?
Ou se eu falar do Joaquim, que pedia ossos em um açougue, dizendo ser para os cachorros, quando, na verdade, era para tentar achar algo de comida para suas crianças?
E se eu te lembrar que o João Pedro mandou uma mensagem para a sua mãe dizendo “Já estou dentro de casa. Fica tranquila” pouco tempo antes de ser assassinado pela PM?
Os números, para quem está assistindo de longe (ou pensa que está) são apenas números. Por mais que doam em alguns e causem espanto em outros. Números não têm alma. Não sorriem. Não sentem o vazio da barriga doer. Não tomam banho em balde em dias com menos 2 graus. Não lidam com a agonia de não poder se despedir de um ser querido. São números.
O Brasil é um país repleto de “cidadãos de bem”, com pregarias, morais e missões supostamente divinas.
Mas o que é ser “de bem” neste mundo de tantas injustiças?
Talvez, um bom começo seja o de não se indignar apenas quando “isso também pode acontecer você”, mas, sim, porque aconteceu e acontece com alguém.
Tenho pra mim que ser um “cidadão de bem” é aprender a não normalizar o absurdo, Mãe.
A benção,
J.
(*) Jamylle Mol é jornalista e marianense
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