Crônicas operações subjetivas

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Despejo inquietações ao tomar café e chá de erva-cidreira. Ouço o chilrear de pássaros no terreiro. Aves poetizam independentemente da razão. Manhã enervada de frio e umidez. Abro a porta, miro o portão de lata. Pintura desgastada pela maresia do tempo. Subo as escadas, retorno para o quarto. Do segundo andar planejo exercícios físicos inexequíveis: cem flexões, duzentos polichinelos, dezenas de agachamentos e elevações frontais. A convenção de corpo esguio faz parte do contexto cultural. Telefone toca, ignoro. Volto para a cama. Tomo remédios de uso contínuo. Quanto aborrecimento! Faz frio, sempre faz algum frio aqui. Loucura liberta, meus pensamentos voam até o outro lado do atlântico. A consciência do desatino diz que sonho desperta. Embarco na fluidez instável das águas escuras à própria sorte. Vivo de desembarques na minha terra. Normal é cárcere de rotas planejadas. Pinto telas com respingos de tintas velhas. Escrevo textos com fragmentos de fertilidade. Que saber esotérico e poliforme traz a seiva da liberdade? Todo. Um delírio aqui, uma histeria ali, uma visão alucinada lá, diagnóstico da ciência mental: um ser fora do prumo. Há desrazão em ser imagem ou discurso, como há desrazão em ser extremamente técnico. Técnica é resultante quatro na soma de dois mais dois. A soma dos números é fixa. Ansiolíticos ao invés de amarrar é protocolo adotado em casos de agitação. Conter é protocolar? Que diferença há entre conter e amarrar? Leveza da expressão. “Estou amarrada feito um porco! Me tira daqui!”

No final do século XVIII, o internamento castigava os loucos, exibindo-os, ainda, em bizarros espetáculos públicos. Homens enjaulados, acorrentados; mulheres marcadas com ferro quente exemplificam a barbárie. O louco era escondido, mas sua vergonha deveria ser exposta, desmascarada. A simbologia da contenção é amarrar, privar a liberdade dos movimentos; castigar exemplarmente. Castigar sequelado de AVC agitado, amarrando-o à grade de cama hospitalar ou de outra forma, é querer domar a inconstância. Domar ou dominar não significa compreender ou saber da AGITAÇÃO, mas querer controlar. O especialista mandou. O especialista tem o poder de poder-fazer o que quer fazer. Ele detém a autoridade. A racionalidade de sua fala é inquestionável. Seu discurso é científico, competente e socialmente autorizado; mesmo que AMARRAR seja um processo de privação da liberdade; instauração da perversidade, do animalesco, do inumano, da penúria ou do extremo sofrimento do aprisionado/contido. A implicação do desvio (desviante: doente) pressupõe em contenção, amordaçar, amarrar.
Pavorosa experiência vivenciada. Não só de ventos despoluídos respiram os pulmões. Nem só de rimas ricas sobrevivem os versos. Vivo pequenas alegrias, caminhando quilômetros dentro de casa. Exorcizo traumas na abstração. Aparo excessos de racionalização na arte. Dialogo com o espelho, resgatando parte de minha interioridade. Acho que me perco de vez em quando, buscando sentidos. Minha loucura é amordaçada e represada, porque insiste na singularidade da coexistência. Tenho exercitado o ato de reprimir opiniões contrárias para não polemizar, mas há sempre uma ponta solta. Falam de liberdade de ser, mas continuam a reprimir a diversidade. Resisto ao confinamento, só não resisto ao aprisionamento da liberdade.


Ainda continuo a planejar exercícios físicos inexequíveis, saberes poliformes da liberdade; uma visão desracionalizada do protocolo absoluto, uma terapia diferenciada para a sequelada de AVC.


Que natureza desencantada criou o homem que funciona pelo princípio da má temática de crônicas operações subjetivas que resultam em seres subtraídos por dominador comum?

#não amarrem os desviantes!

Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV e autora de 16 livros; Membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Presidente da ALACIB-Mariana

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