De tamancos

“Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe”. (João Guimarães Rosa, “Grande sertão: veredas”)

“Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio; comi com delícia a sopa dourada da tia Vicência; de tamancos nos pés assisti à ceifa dos milhos”. (Eça de Queiroz, “A cidade e as serras”)

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Certa ocasião, mergulhado em algumas lembranças da infância, passada em Mariana, com muitas viagens a Belo Horizonte (onde morava minha avó materna, Sinhá Motta), lembrei-me de uma coisa hoje praticamente desaparecida, em especial nas cidades grandes: tamancos. Há anos não via esse utensílio que tanto adultos quanto crianças usavam antigamente. A vida foi correndo. Remeti a recordação dos tamancos ao baú das coisas velhas e desusadas, ao chamado “relicário de saudades”.

Até que um dia, no Rio, numa solarenta manhã de sábado, num armazém situado na esquina da Rua Regente Feijó com a Rua Visconde do Rio Branco, centro da cidade, dei com a visão de uma porção daqueles quase pré-históricos calçados, pendurados à porta, em meio a outros produtos comerciados pelo proprietário do estabelecimento, um português de meia-idade, amável, portador de grossas sobrancelhas à Julio Sanguinetti e Darcy Ribeiro.

Estaquei, entre espantado e incrédulo, como se tivesse posto olhos sobre um abantesma, um fantasma de outras épocas, uma visagem do tempo do gramofone, do daguerreótipo, do ábaco (para ensino elementar de aritmética), da goma arábica e da tinta nankim…

Tamancos! Tamancos à vista! Custou-me acreditar no que via, na agitação matinal do centro do Rio. Mirei por algum tempo aquele cacho de tamancos, oferecidos à freguesia junto a panelas, almofarizes, caçarolas, tachos, pilões, canecas, balaios, urinóis (penicos) de barro e esmaltados e mil outras utilidades domésticas encontráveis num bom armazém português à moda antiga, de secos e molhados.

Lá em casa (que tinha horta e jardim), em Mariana, o uso do tamanco era comum, quase obrigatório. Hesitei entre entrar no honrado estabelecimento ou prosseguir meu caminho, rumo à Praça Tiradentes e Rua da Carioca. Cheguei a dar uns passos. Parei. Recuei, pensando nos tamancos que havia anos não via em parte alguma. Voltei para, por curiosidade, perguntar pelo preço. Apenas sessenta cruzados novos, coisa equivalente mais ou menos a dois chopes ou dois maços de cigarros “mata-ratos” (como outrora se pilheriava).

Apalpei o par, o pé esquerdo preso ao direito por um curto barbante fino. Compro? Não compro? O que fazer com um par de tamancos, se já não tenho casa com horta, jardim para cuidar, barro para frequentemente palmilhar? Mirei e remirei aquela peça de museu, aquele artefato antigo e anacrônico como polainas, pince-nez e gorro de dormir, coisas do tempo do Onça (apelido de um feroz chefe de polícia do Rio setecentista). Puxei conversa com o vendedor, que afirmou, categórico:

–Aqui se vende pouco, mas no interior do estado muita gente ainda usa.

Foi o quanto bastou para encorajar-me a comprar um par. Afinal, eu não seria o único brasileiro a calçar (calçaria?) tamancos no limiar do ano 2000, tempo de sapatos de cromo alemão, tênis que fala inglês fluente e elegantes mocassins carimbados com griffes famosas.

Ora, direis, comprar tamancos? Certo, cronista, perdeste o senso e o siso. Pois vos direi, meus caros, que saí do armazém feliz, trepado nos meus tamancos, pelo menos metaforicamente. (Tamancos metafóricos! Sem dúvida, ó escriba tamanqueiro, perdeste de fato o senso e o siso e andas perdido no mundo ! – direis, com uma ponta de razão.)

          ***

Hoje pouca gente, especialmente entre os jovens, sabe o que é um tamanco desses rústicos, toscos, comuns, sem enfeites graciosos, simples calçados muito em uso no interior de Portugal e do Brasil em tempos idos.

O tamanco comum, caseiro, artefato de trabalho em hortas, pomares, quintais, jardins, chácaras, sítios e locais congêneres, sumiu de circulação e só se encontra em dicionários e enciclopédias, em termos assim:

“TAMANCO – O mesmo que tamanca. Utensílio também conhecido por pé de pau”.

“TAMANCA – Sapato grosseiro que em vez de sola tem uma peça de pau ou cortiça para andar pela lama”.

Ou ainda:

“TAMANCO – Calçado grosseiro, desprovido de talão ou com talão baixo, feito com base inteiriça de madeira ou cortiça”.

Há outras acepções, mas aqui interessa o tamanco como calçado. Em Portugal tamanca, no feminino, é um tamanco baixo, usado pelas mulheres, bastante confortável e em que a gáspea termina antes do meio do pé.

Gáspea?  Que diabo é gáspea?

Com a paciência de um velho tamanqueiro vos digo que, segundo os dicionaristas, gáspea vem a ser a parte dianteira, de cima, do calçado, não cobrindo de todo o peito do pé. Como se fosse uma tira, pois não? Bem, para quem quiser especializar-se em tamancologia já é uma boa lição elementar, havereis de convir.

Já esta lição todo mundo sabe: subir nos tamancos ou nas tamancas significa irritar-se, zangar-se. Subir ou trepar nas tamancas. Quando uma pessoa “põe-se nas suas tamancas” é sinal de que teimou, embirrou, não vai ceder. “Fincar-se nas suas tamancas” é tomar posição firme e sobranceira e até responder com arrogância, o que, aliás, não é recomendável, nem de bom tom. Pejorativamente, quem usa tamancos é chamado tamancudo. Por ser artefato rústico e grosseiro, por extensão tamancudo passou a designar um sujeito ordinário, grosseiro, rústico, rude, sem polidez.

Bem, para esta tamancuda primeira aula, basta. Tocou a sineta do recreio. Chega de tamanquices, ó escriba !

          ***

Chega, não, rogo me permitais um acréscimo, uma achega, a título de curiosidade de almanaque. Refiro-me ao famoso tamanco holandês.

Tamanco holandês é outra coisa, é peça de categoria, uma peça de solidez e de envernizada beleza. Seu desenho é talvez tosco, bruto, mas comporta nuances de cores, pinturas de moinhos, pássaros, flores (especialmente a tulipa), cenas rurais madrigalescas. O tamanco está associado à vida política e econômica da Holanda. Na verdade, tornou-se um símbolo do país, como o moinho e a tulipa.

Se eu não puder viajar à bela Holanda, terra do filósofo Erasmo de Rotterdam, pelo menos quero ler “A Holanda”, livro de Ramalho Ortigão (amigo de Eça de Queiroz) e conhecer uma cidade holandesa no Brasil, a já famosa Holambra, próxima a Campinas e Itu, em São Paulo. Foi fundada por imigrantes holandeses, em 1948. Famosa pelas flores e plantas ornamentais e pela Expoflora. É uma estância turística com crescimento exponencial. Ali se encontram alguns tesouros culturais que resgatam tradições holandesas trazidas pelos imigrantes, como danças folclóricas, pratos típicos e cenários em que se destaca a tradicional e inconfundível arquitetura holandesa. Li num jornal paulistano que, neste ano, foi inugurado na cidade o restaurante The Old Dutch, de comida holandesa, mas também com pratos que levam um toque tropical nosso, sem perda do sabor holandês. Não digo que terei coragem para enfrentar um eisbein, joelho de porco cozido, com puré de batatas, puré de maçã caseiro e arroz típico, mas por certo beberei a cerveja The Old Dutch, que espero seja leve.

O tamanco holandês, o moinho e a tulipa são as estrelas promocionais dessa já bem conhecida Holambra das flores. Ali mora o aclamado Piet Schoenmaker, um holandês que lá chegou muito jovem e dirige grupos de danças folclóricas holandesas, em que o colorido tamanco é figura indispensável.

          ***

Concluindo, voltemos rapidamente aos meus tamancos cariocas.

Cá eu então, de posse do meu sólido e bom par de tamancos, com gáspea de cor sóbria, que se pode chamar marrom, como convém a um senhor de meia-idade e pai de família, não sei exatamente o que fazer deles. Se Deus me der vida e saúde, espero que, aposentado e cheio de netos, possa dedicar o resto de meus dias a cuidar de uma pequena horta, tornando-me um velho e pacífico hortelão, como o Manuel Hortelão, lá na herdade do Jacinto, em Tormes, no Eça de “A cidade e as serras”, eu, trepado em meus tamancos, entre repolhos, cebolas, alfaces, couves, pimentas, taiobas, beldroegas, salsas e cebolinhas de cheiro.

(*) Danilo Gomes é marianense, escritor, advogado e jornalista, membro da Academia Mineira de Letras e cidadão honorário de Belo Horizonte

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