No Bar do Morfeu

“O mar, tão distante, começava a falar-nos de coisas desconhecidas e a aguçar-nos a curiosidade. Talvez, por isso, a ânsia dos mineiros, marcadamente os de Diamantina, de visitar o Rio de Janeiro para ver o grande e misterioso mar.” (Affonso Heliodoro, na crônica “Portugal em Diamantina”)

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Em Diamantina, são sete e meia da noite de 9 de março de 2000. O mundo não acabou no alvorecer do ano e alguns sinos das igrejas tocaram alegremente no decorrer do dia. Estamos salvos do Apocalipse e das mais catastróficas profecias, pelo menos temporariamente. Depois das andanças pela velha cidade, banho tomado na Pousada do Garimpo, dou entrada no famoso Bar do Morfeu, que eu só conhecia de nome e renome.

O bar fica muito próximo à Pousada. Apenas alguns passos. O proprietário do pequeno e aconchegante estabelecimento, que não me conhece, recebe-me com fidalguia diamantinense, tal qual um aristocrata do Ancien Régime, um gentilhomem do diamantino Arraial do Tijuco. É ele Antônio Dornas Vieira, seu nome de batismo religioso e certidão civil. A pequena edificação de duas portas e cinco mesas fica praticamente no centro da cidade que se tornou Patrimônio Cultural da Humanidade. Aliás, a urbe histórica que nos deu Juscelino Kubitschek de Oliveira não poderia deixar de ostentar esse honroso título concedido pela Unesco, o órgão cultural da ONU.

Puxo conversa com Antônio Dornas Vieira, que gosta de ficar zanzando pelo estabelecimento, servindo as bebidas e os tira-gostos, cada um melhor que o outro: queijo canastra de meia-cura, carne de sol com mandioca, torresmos de barriga, carne de panela, almôndegas com seu pirão, fatias de lombo com farofa, pé de porco, língua ao vinho, fígado acebolado. Até Brillat-Savarin – o da fisiologia do gosto – lamberia os beiços…

Depois da segunda cerveja, que bebo sozinho, o proprietário e eu já estamos amigos de infância. Aí, à vontade, eu lhe pergunto o porquê do Morfeu. Ele dá um sorriso franco:

É por causa dos meus olhos meio fechados, com jeito de sono. O apelido vem do tempo em que eu era rapazinho. Ficou. Virei Morfeu…

No balcão, antigos fregueses discorrem sobre o Clube Campestre, refúgio onde só falta o mar; é a nostalgia do mar nas terras de Minas, que só tem Mar de Espanha, bela cidade.

De repente, chega a senhora (acho a palavra esposa cerimoniosa e demasiado formal) do Morfeu, Magda, e ficamos os três proseando. Ela nasceu em Materlândia (antiga Mãe dos Homens), veio estudar em Diamantina e se casou com Antônio há 25 anos. Casal feliz, benza-o Deus! Magda vê se tudo está em ordem e em paz e volta para casa.

Peço outra cerveja – e outra, e uma porção de queijo de meia-cura, creio que lá da vizinha cidade do Serro ou de Diamantina mesmo.

A noite avança. O Bar do Morfeu tem história. É frequentado por gente finíssima. Vou mencionar apenas alguns nomes: Eduardo Almeida Reis (que me recomendou esse pequeno paraíso), Cyro e Anna Maria Siqueira, o falecido Celius Aulicus (o saudoso “General”), Gilberto Amaral, Serafim Jardim, Horácio Miranda Pereira e Vera Lúcia Felício Pereira, Teófilo Leão Motta, Saulo Coelho, Ricardo Pereira (meu antigo colega ginasiano em Ouro Preto), João Pimenta da Veiga Filho, Roberto Brant e seu irmão Fernando Brant, Américo Antunes, Otto Sarkis, Marcel Debrot.

No Bar do Morfeu, sou um homem feliz. Aproveito o dia e especialmente a noite “Carpe diem et noctem”, diria o poeta, latino ou saxão, heleno ou árabe das Mil e Uma Noites). Repito: no Bar do Morfeu sou um homem feliz, proseando com o próprio, não o da mitologia grega, o deus do Sono, filho da Noite e do Sonho e que por certo só bebia vinho do Monte Olimpo e hidromel, mas o já legendário diamantinense de amável convívio. Simpático como seu irmão de nome Marinho, que tem um restaurante na Praça da Matriz, cujo cardápio mimoseia o freguês com dois pratos excelsos: uma bacalhoada à boa moda lusa e um ora-pro-nóbis de frango acompanhado de angu fumegante, o pitéu estudado por Eduardo Frieiro em seu clássico livro “Feijão, angu e couve”.

Mas voltemos ao bar do Morfeu, a quem peço mais uma cerveja e de quem ouço mais um caso pitoresco. Rimos, na noite estrelada que rompe o tempo mágico passando por nós.

Na Diamantina de Chica da Silva e JK, mais uma vez, sou um homem feliz, um mortal feliz de estar vivendo…

(*) Danilo Gomes é marianense, escritor, advogado e jornalista, membro da Academia Mineira de Letras e cidadão honorário de Belo Horizonte

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