O lobo e suas diversas faces

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Faz tempo que me interessam os contos antigos, aqueles imortalizados pelos irmãos Grimm, sobretudo, pela representação do outro, no que diz respeito ao ardil que envolve o planejamento de ações tomadas contra quem não tem como se defender. Geralmente, nessas narrativas, observa-se a dualidade que coloca o bem em confronto com o mal, e caminhando um pouco mais para a origem desses textos, o que fica mais em destaque é a reflexão sobre como as narrativas dialogam com as ações sobre as quais as pessoas parecem ter certa dificuldade para discutir abertamente. 

Quem, por exemplo, nunca ouviu ao menos uma vez a história da Chapeuzinho Vermelho? Com muito entusiasmo, a menina veste a capa vermelha feita pela mãe, pega a cesta com as guloseimas e segue certa da chegada à casa da avó que estava doente. No entanto, a criança optou pelo caminho da floresta, sem ficar atenta ao comando dado antes da sua saída: “Siga o caminho mais longo, pois a floresta esconde perigos.” Inocente, Chapeuzinho encanta-se com o caminho florido. Mas, de repente, ao colocar umas flores na cesta para alegrar o dia da sua querida avó, aparece o lobo, mostrando-se solícito, aparentemente preocupado com a criança que estava sozinha.

Pronto. É o momento perfeito para que o lobo se faça de bom amigo, dê instruções à menina e chegue até o destino da Chapeuzinho bem antes dela. E o que a espera no fim das contas é a surpresa de encontrar esse estranho disfarçado na casinha distante. Achando tudo muito esquisito, a menina conta com a ajuda de um caçador que ouve os seus gritos de pavor, salva a avó, castiga o lobo e tudo termina bem. Fica para a Chapeuzinho Vermelho a lição de ser mais atenta e de não falar com estranhos.  

Ponto final. 

Na verdade, não há ponto final, e sim a perda da inocência da criança, que, a partir desse acontecimento, começa a perceber que o mundo é cheio de perigos. E o fato mais aterrador é que o lobo pode estar em qualquer lugar. O lobo pode ser qualquer um. Nessa perspectiva, assim como o lobo é uma metáfora para o perigo, a floresta é a representação simbólica de um mundo hostil, que pode ser o espaço da rua, da praça, da escola ou até mesmo da própria casa, pois o lobo nem sempre é um estranho. Acontece que, muitas vezes, ele se disfarça, usando de diversos sortilégios para ganhar a confiança, amedrontar e, por fim, dar o último golpe. 

Muitos afirmarão que a Chapeuzinho não passaria pelo perigo do quase aniquilamento provocado pelo lobo, caso tivesse obedecido à mãe. E dirão ainda que foi muita sorte ter aparecido o caçador para salvá-la. Fica a responsabilidade do perigo lançada às mãos da menina. E como tudo terminou bem, ponto para a narrativa maniqueísta que deu o seu recado. Ao menos para as versões que nos chegam na contemporaneidade. Porém, fora da representação ficcional, nossas crianças nem sempre contam com finais felizes. Muitas delas, após a violência sofrida, precisam convencer o outro da sua própria fragilidade. O lobo, portanto, tem a sua ação justificada, e a pergunta que se faz é sobre que mundo construímos diariamente para todos nós. Desejamos ser lobos? 

Não cabe a manutenção de discursos que responsabilizem a criança por um mal sofrido, porque isso é o mesmo que afirmar a falência da sociedade. Há uma responsabilidade coletiva pela hostilidade de um mundo que arranca da criança os seus sonhos e o seu direito de crescer em segurança. É verdade que é preciso dizer às crianças que o mundo não é uma casinha de balas, biscoitos e chocolates, mas é fundamental, acima de tudo, permitir que elas cresçam cultivando jardins.

(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana

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