“Lugar de fala” por procuração
- André Lana (*)
- 25/08/2020
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”
Compartilhe:
O exercício da boa advocacia é um constante equilíbrio entre empatia e racionalidade. Ao mesmo tempo em que o advogado precisa entender por completo todos os fatos controversos e os sentimentos do seu cliente, de forma a garantir-lhe a melhor e mais completa representação, precisa também manter-se racional e longe das paixões que invariavelmente comprometem um bom resultado. Fato é que quando os sentimentos afloram, as discussões saem dos trilhos técnicos e vão para o campo de batalha. Em razão disso, a propósito, a Ordem dos Advogados do Brasil recomenda a seus membros não advogarem em causa própria, justamente porque a combinação de sentimentos pode acabar prejudicando uma análise técnica e isenta do caso.
O esperado equilíbrio da balança da Justiça, que de olhos vendados deve lançar sua espada sobre a ilegalidade, decorre do comportamento racional e sereno das partes. Um processo judicial não pode ter sentimentos, mas argumentos técnicos capazes de confrontar os fatos e as normas com equidade e verdade. Ao invés da vitória pela força, o convencimento é o objetivo. Por esta razão o advogado é considerado pela Constituição Federal como essencial à Justiça, tendo sua atuação técnica assegurada por meio das procurações de representação dadas por seus clientes.
Por outro lado, o polêmico termo “lugar de fala” é utilizado por diversos pensadores para explicar o quanto a trajetória subjetiva da pessoa favorece a sua capacidade de compreensão sobre os temas que diretamente lhe atingem. Segundo as correntes doutrinárias majoritárias, a experiência pessoal permite ao sujeito falar com mais propriedade sobre os temas que lhe envolve, tornando-o referência para argumentação. Por esta lógica nenhuma outra pessoa seria capaz de expressar com precisão os seus sentimentos, direitos e desejos.
O que vemos atualmente nos debates políticos e sociais é um alvoroço sobre o “lugar de fala” e uma intolerância à representação por procuração. Há grupos que de tão envolvidos em suas próprias lutas acabam se fechando à contribuição de terceiros. É verdade que há também grupos que não sabem diferenciar a empatia na representação do seu próprio mérito. Exemplo disso foi o episódio recente envolvendo a antropóloga branca Lilia Schwarcz, que após escrever sobre as questões raciais presentes no novo álbum da cantora Beyoncé foi duramente criticada por movimentos negros. Muitos evangélicos, por sua vez, não aceitam qualquer outra defesa do cristianismo que não seja a própria, nem sempre alinhada aos dogmas que dizem defender. E o que dizer de um homem que se manifesta publicamente contra a homofobia? Imediatamente ganha o rótulo de “suspeito”, já que na cabeça da maioria o preconceito só é percebido por quem o sofre diretamente. Há tantos outros exemplos de temas que atualmente parecem ser privativos de determinados grupos, que infelizmente defendem essa exclusividade em razão do seu “lugar de fala”.
O fenômeno social que refletiu escancaradamente nas últimas eleições aponta que as pessoas estão se agrupando em pequenos nichos e conversando apenas entre elas. O “lugar de fala” passou a ser o único lugar em que a fala é feita. Não é tolerada qualquer representação racional que vise o convencimento e a mediação. A vitória almejada é pela aniquilação do oponente, visto passionalmente como inimigo. É bem verdade que setores da própria Justiça deixaram-se contaminar por essa onda, mas isso não significa a deterioração da instituição.
O “lugar de fala” deve ser respeitado e ouvido, sempre. Contudo, não pode ser a única fonte do debate e tampouco a única forma de expressão. A representação por procuração, seja no âmbito da Justiça ou no campo político, ainda é a melhor e mais eficiente forma de avanços dentro do nosso Estado Democrático de Direito. Aquele que puder contribuir na defesa dos interesses individuais ou coletivos mantendo-se calmo e racional terá mais condições de convencimento do que o sujeito imerso em seus próprios sentimentos.
(*) André Lana é advogado militante nas áreas de direito público e gestão social.
Veja Mais: