Uma história para Sherazade
O dia seguinte, entretanto, jogou-nos encantadoramente no coração da atmosfera das Mil e Uma Noites e nas ruas tortuosas e arquitetura exótica do Cairo. A Bagdá de Harun-al-Raschid parecia viver de novo”. (H.P. Lovecraft, no conto “Aprisionado com os faraós”)
- Danilo Gomes (*)
- 29/08/2020
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”
Compartilhe:
Conta Simbad, o marujo, em As Mil e Uma Noites: “Meu único desejo era viajar. Deixei-me levar pois, novamente, pela paixão à aventura e pelo desejo de negociar em terras estranhas. (…) Ia agora conhecer a Pérsia, país encantado de onde ouvira contar as mais lindas histórias. Realmente, percorrendo-lhe algumas províncias, fiquei encantado com a arte e os costumes de seu povo. Em seus belos mercados vi bailarinas graciosas e ágeis, vi engolidores de espadas e mágicos sem conta. Mas, o principal é que fiz belos negócios. Dando em troca as mercadorias que trouxera de Bagdá, adquiri tapetes valiosos tecidos à mão, brocados finíssimos e jóias maravilhosas”.
O mar sempre me chamou. Um dia, deixei Bagdá e fui correr mundo. Fiquei por algum tempo numa grande ilha remota. O sangue aventureiro borbulhou de novo nas minhas veias e parti no navio de Sindabad, o Marujo, que havia atracado na ilha para negociar e buscar víveres. Carregamos também o navio com aloés, cânfora, sândalo e cravo, noz moscada, pimenta, e madeiras preciosas, madrepérolas. De ilha em ilha, negociando, o navio chegou a Basra. E seguimos mar afora.
Gostaria que a senhora Sherazade (ou Sahrazad) contasse minha modesta história, uma noite, ao poderoso sultão Shahriar.
Uma tarde de medonha tempestade, o navio naufragou em terras de terríveis canibais. Sindabad (ou Simbad), eu e poucos mais nos salvamos, pela graça do Altíssimo. Percorri mais terras e mares. Seja por mar, seja por terra, em caravanas, conheci Damasco, Kufa, Mossul, Alepo, Palmira, Shiraz, Cairo, Ras Shamra, Petra, Tel-el-Amarna, Samarkanda, Timbuctu, Bukhara, Belkis, AbKar e outras cidades encantadoras e misteriosas.
Amei mulheres que depois me abandonaram. Ou a febre do mar me fez abandoná-las? Conheci a pobreza e a riqueza de palácios de jade e pórfiro, ouro e esmeralda. Ganhava, perdia, voltava para o mar.
Conheci terras onde viviam lendários gênios do bem e do mal (pois há sacramentos do bem e sacramentos do mal), duendes, figuras estranhas do submundo, e até vi o gigantesco pássaro Roc (ou Rochedo), de natureza totêmica. Vi serpentes monstruosas. Vi, nas águas do mar, grandes enguias que eram verdadeiras cobras e não peixes. Conheci o poderoso rei Saleh de Samandal, soberano do Reino dos Cem Mil Diamantes, que se senta num trono de rubi. Vi maravilhas com que nunca sonhara.
Que a bela senhora Sherazade conte minha história ao “rei venturoso”, como ela, com medo, chama o poderoso e cruel sultão, que ainda vai se arrepender, no fim da vida, quando estiver prestes a acertar as contas com o Altíssimo. Um gênio do bem me disse, no deserto do Egito, durante uma caravana, que o sultão se casaria com a sua bela contadora de histórias, mãe de seus filhos.
Neste momento, depois de uns dias em Bagdá, reunido com meus amigos no Café dos Príncipes, num dos bazares do mercado, estou novamente no mar, acompanhando Sindabad,o Marujo, vendendo e comprando mercadorias: tecidos finos, ouro, diamantes, esmeraldas, especiarias como cravo-da-índia, pimenta, gengibre, e fardos de seda e brocados do Cairo, Suez e Alexandria, almíscar, sândalo, âmbar, porcelana, marfim, pérolas e rubis, ânforas com perfumes raros, tapetes, colares, braceletes de ouro, aneis, tiaras, pratarias.
Enfrentamos piratas facínoras e perversos, bem como medonhas borrascas e ventanias e agônicos naufrágios. Cheguei aos confins das ilhas de Kelas, dos Sinos e de Serendib. Pensei que por lá entregaria a alma à misericórdia do Altíssimo.
Sua irmã, Dinarzad, já com sono, e que escutava a história, junto com o monarca, dirá a Sahrazad (ou Sherazade): “Como é bela a sua história!” E ela responderá: “Você ainda não viu nada da minha história. Na próxima noite eu lhe contarei algo mais admirável e espantoso, se eu viver e o rei me preservar”.
Graças ao Altíssimo, sobrevivi a três naufrágios, em companhia de Sindabad, o Marujo, personagem das “Mil e uma noites”. Conheci terras e mares e até os esplendores, não todos, do palácio do califa Haarum Al-Raschid, poderoso e sábio.
Meu nome? Diante da magia e dos tesouros literários, do maravilhoso das “Mil e uma noites”, meu nome não é nada e se perderá na cósmica vertigem do tempo. Meu nome será apenas uma pequena estrela distante no encantador céu de Bagdá.
(*) Danilo Gomes é marianense, escritor, advogado e jornalista, membro da Academia Mineira de Letras e cidadão honorário de Belo Horizonte
Veja Mais