As flores de setembro

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Início de um novo mês. É fim do inverno e a natureza em seu curso ininterrupto se renova para a chegada da primavera. Seis meses completos desde a confirmação do primeiro caso de covid-19 no país. Quantas semanas até o final de 2020? Estamos saindo da tormenta? Entre as expectativas de janeiro e os propósitos anotados na agenda, uma nuvem de aflições cobriu o céu. Certamente, este tem sido um ano incrivelmente diferente. 

Vivemos um período atípico. Às vezes, parece que 2020 ainda nem começou. Outras vezes, parece que o tempo parou de vez, repetindo os mesmos fatos. De repente, é um espaço-tempo ilusório que veio nos assombrar. Quando estamos dentro de um pesadelo, não é essa a sensação, tornando-se urgente que alguém nos salve da tormenta? O problema é que esse pesadelo é real. Abrimos os olhos e o monstro continua nos perseguindo. Na TV, no rádio, na internet, muitas vozes anunciam tempos sombrios. A rua não é mais a mesma. Não sabemos ao certo o que podemos esperar no pós-pandemia. Porém, diante do que tem acontecido nesses últimos meses, alguns efeitos já são bem visíveis, mas podem ser imperceptíveis para olhos embotados pelo desamor. 

O primeiro deles, sem dúvida, são os abraços ausentes. Uma menina me disse outro dia que tem sofrido muito por não poder abraçar os seus amigos e professores. Ela não vai mais à escola e tudo se dá através de uma tela. Ao menos, ela ainda sorri, porque tem a esperança de que isso passe logo. “Quem sabe depois do inverno, não é?” Eu quero dizer que sim, no entanto, a TV, o rádio e a internet apresentam números crescentes. Não quero que invada o seu coração uma onda pessimista, mas há muita gente chorando sozinha, sem a oportunidade de um último abraço. 

Tudo passa. Tudo passará. Verdade inexorável, embora não apague as marcas deixadas pelo sofrimento. Efeitos no corpo? Também na alma. Tantos assintomáticos. Tantos outros sobre os quais não sabemos nada. Tantas doenças se manifestando em quem teve a rotina totalmente alterada dentro e fora de casa. Quem não pôde aderir ao isolamento e quem teve o trabalho levado literalmente para dentro de seu refúgio. Quantos medos, dúvidas, questionamentos! Segue a vida repetindo os dias. Seguem a TV, o rádio e a internet nos avisando da corrida pela vacina libertadora. Segue uma corrida de vaidades também. 

São dias difíceis para todos. Para uns, eles podem ser difíceis demais. A incerteza do sustento. Filhos, pais, mães, aluguel, escola fechada. Bocas silenciadas e um sorriso amargo. Se o ano já começou, quando é mesmo que ele termina? Auxílios emergenciais se esgotam. Quantas filas a espera de uma oportunidade virão daqui para frente? Mãos se multiplicam estendidas nas calçadas. Olhares perdidos que não ousam mirar o céu.

Fosse mesmo um espaço-tempo ilusório, melhor seria aguardar a passagem das horas, dos dias, das semanas até o último fôlego do ano. Em certo momento, alguém nos acordaria. Mas o pesadelo é real e cruzar os braços é omissão. Fato é que em tempos sombrios como os de hoje, em algum momento, a fraqueza nos assombra, porém é preciso lutar. É urgente resistir. E, por isso, me volto ao olhar daquela menina que insiste em ter esperança. Aproxima-se a primavera. Outros ventos. Os jardins começam a florir. Necessário renovar o desejo da brandura. Entender o tempo de cada coisa. Assim como depois das folhas secas, a natureza acorda para um novo ciclo, um novo tempo. É necessário que possamos acordar também.

(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana.

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