Justiça bloqueia R$100 milhões da Vale e obriga mineradora a reparar integralmente os atingidos de Antônio Pereira
Decisão também garante Assessoria técnica aos atingidos da Barragem de Doutor. Para especialista, Vale fere direitos fundamentais na condução da crise no distrito de Ouro Preto.
- Lui Pereira e Marcelo Sena
- 12/09/2020 às 08:41
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Em decisão preliminar publicada na quinta-feira (10) pela 1ª Vara Cível da Comarca de Ouro Preto, a ação civil pública movida pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) amplia de R$50 milhões para R$100 milhões o valor bloqueado nas contas da empresa e obriga a mineradora a reparar integralmente os atingidos pela Barragem Doutor em Antônio Pereira. A decisão também autoriza o MPMG a contratar uma assessoria técnica independente para os atingidos. Tatiana Ribeiro de Souza, professora da UFOP e especialista em Direito Constitucional, vê avanços na medida.
Desde o último mês, a Agência Primaz acompanha o desenrolar da situação de emergência vivida pelos moradores do distrito de Antônio Pereira. Com o aumento do nível de instabilidade da Barragem Doutor, construída à montante da comunidade no ano de 2002 e o posterior estudo da mancha de possível inundação por rejeitos, moradores passaram a ser removidos de suas casas e as ações da empresa e do poder público passaram a ser questionadas pelos atingidos.
A resolução publicada na quinta pela juíza Kellen Cristini de Sales e Souza é uma esperança aos atingidos, pois além do aumento do valor do bloqueio financeiro sobre à mineradora, outras pautas importantes da comunidade foram atendidas pela justiça. A obrigação da reparação integral por danos sociais e econômicos e a contratação de assessoria técnica independente para defender os interesses dos atingidos são avanços fundamentais para os moradores de Antônio Pereira e da Vila Antônio Pereira.
Entenda a decisão judicial
Além de dobrar o valor bloqueado das contas da Vale para garantir a execução de ações emergenciais, a decisão da juíza Kellen Souza reconhece a responsabilidade da mineradora “pelos danos causados em decorrência do processo de remoção das famílias residentes na área a ser potencialmente atingida em caso de rompimento da barragem Doutor, no Distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto, e, por consequência, [condena] a sociedade empresária Vale S.A à reparação integral destes”.
A Juíza Kellen também deferiu o pedido de contratação de uma assessoria técnica para os atingidos, ainda que o pedido do MPMG sobre isso tenha sido negado anteriormente. Com essa decisão tomada na quinta-feira, o MPMG está autorizado “a expedir os termos de referência para posterior elaboração dos editais de seleção/chamamento público”. A contratação da entidade técnica de assessoramento aos atingidos de Antônio Pereira deve ser executada nos próximos 45 dias.
“Não obstante este Juízo tenha indeferido o pleito em questão nas decisões de ID’s 111713180 e 119856817, reputo que, neste momento processual, diante da prova documental que instrui o feito, de fato, deve ser deferido.
Mesmo porque, anteriormente, já havia reconhecido a importância da participação efetiva e esclarecida da população atingida, sendo o pedido indeferido tão somente pela insuficiência de provas que demonstrassem a imprescindibilidade da Assessoria Técnica Independente nos moldes pleiteado.
Contudo, extraem-se dos autos documentos que comprovam o quadro de incerteza, falta de informação, enfim, de desnorteamento, que afeta a população atingida, não obstante todo o empenho e dedicação do Parquet na busca da tutela dos direitos dos envolvidos. Assim, a prova documental corrobora as alegações autorais quanto à necessidade de implementação da assessoria.”
A mineradora Vale terá 15 dias para recorrer da decisão e apresentar novas provas ao processo.
Palavra de Especialista
“O que precisa ser feito imediatamente, e a ordem da justiça é exatamente nesse sentido, é garantir que todas as medidas emergenciais sejam tomadas.” (Professora Tatiana Souza)
Em entrevista a nossa reportagem, Tatiana Ribeiro de Souza, professora de Direito Constitucional da UFOP, esclarece o conceito de reparação integral e comenta a decisão judicial. Também pedimos à professora que fizesse uma breve análise da situação da família de Jaqueline e Paulo Henrique, que construíram a casa no lote da família, localizado dentro da mancha da Zona de Autossalvamento (ZAS) da Barragem de Doutor.
A professora de Direito Constitucional defendeu a decisão judicial, ao esclarecer as diferenças entre indenizações e ações emergenciais. “O acolhimento pelo transtorno imediato que essas pessoas estão passando demanda medidas emergenciais, que não podem ser confundidas com a indenização. Para se calcular uma indenização, é preciso fazer um levantamento dos danos e isso não é uma coisa rápida e nem deve ser feita no calor do acontecimento. O que precisa ser feito imediatamente, e a ordem da justiça é exatamente nesse sentido, é que todas as medidas emergenciais sejam tomadas. Ou seja, se as pessoas estão sendo retiradas das suas casas, elas precisam ser acomodadas de forma digna. Estão sofrendo algum dano físico ou mental? Elas precisam de tratamento. Elas deixaram bens importantes? Precisam de segurança. Elas têm medo de que entrem nas casas que estão vazias? A empresa tem que assegurar a proteção do patrimônio que está vazio”.
“Você não dá preço para a sua saúde. Ninguém vende a própria saúde. Então, o cuidado com a saúde das pessoas atingidas é responsabilidade das empresas sim. Isso não pode estar restrito às pessoas que são removidas. Toda a comunidade de Antônio Pereira é atingida e precisa de reparação integral.”
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A professora de Direito Constitucional pontuou ainda que a mineradora é a grande causadora dos problemas enfrentados pela comunidade e por isso deve ser responsabilizada. “O dano à saúde, por exemplo, que não é calculado monetariamente. Você não tem como estimar um valor para sua saúde. Você não dá preço para a sua saúde. Ninguém vende a própria saúde. Então, o cuidado com a saúde das pessoas atingidas é responsabilidade das empresas sim. Isso não pode estar restrito às pessoas que são removidas. Toda a comunidade de Antônio Pereira é atingida e precisa de reparação integral, porque quando uma parte das pessoas é removida das suas casas, aqueles que ficaram também foram atingidos. Perderam vizinhos, perderam a tranquilidade, eles vão conviver com obras. Mesmo que as pessoas não tenham sofrido um dano material na moradia, elas sofreram um dano indireto. E o que o Direito Ambiental brasileiro determina é que todos os danos, diretos e indiretos, têm que ser arcados pela causadora do dano. Existe o princípio do ‘poluidor pagador’. Aquele que polui tem que pagar pelo risco e pelo dano”.
Tatiana Souza explicou também porque as mineradoras são contrárias à contratação de uma assessoria técnica independente para os atingidos. “As empresas quando vão negociar a responsabilidade que elas têm em relação aos danos que elas causam, elas têm uma equipe técnica que trabalha para elas. São advogados, engenheiros, assistentes sociais… Se tem uma equipe técnica trabalhando para as empresas, o mínimo que se pode esperar que a parte contrária também tenha direito a uma equipe técnica trabalhando para ela. A menos que a gente tire todos os advogados, todos os engenheiros e coloque os diretores da Vale para tratarem pessoalmente com os atingidos. Isso não vai acontecer, porque eles são respaldados por profissionais”.
“É absurdo que as pessoas negociem com as empresas sem uma assessoria técnica. Seria a mesma coisa de o Atlético e o Cruzeiro se enfrentarem em uma partida e a comissão técnica de um dos times treinar as duas equipes. É exatamente isso que as empresas querem fazer.”
“Essa é uma situação de absoluta desigualdade. A assessoria técnica visa criar um equilíbrio processual para que as pessoas atingidas também contem com uma equipe técnica para dar suporte às decisões que elas têm que tomar. É absurdo que as pessoas negociem com as empresas sem uma assessoria técnica. Seria a mesma coisa de o Atlético e o Cruzeiro se enfrentarem em uma partida e a comissão técnica de um dos times treinar as duas equipes. É exatamente isso que as empresas querem fazer. Elas querem que a sua equipe técnica oriente tanto as empresas quanto os atingidos. Direito deve garantido e o que os técnicos das empresas fazem é tentar negociar o que é direito”, esclarece Tatiana.
Sobre o caso da família de Paulo Henrique e Jaqueline, a professora aponta a responsabilidade da mineradora em criar um ambiente de risco para toda a comunidade de Antônio Pereira. “Entre os danos causados pela Vale à comunidade de Antônio Pereira, além do dano material palpável, existe um dano no modo de vida das pessoas, que também precisa ser indenizado. Além do modo de vida, existe um dano ao projeto de vida. Isso faz parte da vida das pessoas. A gente tem projeto. Uma pessoa que tem um lote grande em Antônio Pereira e tem uma moradia pode sonhar que os filhos construam no mesmo lote ou ter o plano de aumentar a casa. Planos fazem parte da vida da gente. Quando a mineradora impõe uma situação de limitação ao uso da cidade e ao uso dos seus bens, como o lote ou a moradia, ela também afeta os projetos de vida”.
Por fim, a professora Tatiana lembra que o distrito de Antônio Pereira já existia quando a barragem foi construída e que a Vale assumiu os riscos ao realizar o empreendimento que ofereça risco à vida das pessoas. “Me parece que tem um comprometimento ao projeto de vida dessa família. Quando você me diz que ela construiu numa área de risco, se esse risco foi causado pela empresa, quem tem que arcar com o dano é a empresa. Porque esse não é um risco natural, é um risco criado. No dia que a empresa construiu a barragem, ela assumiu todos os riscos. Ela nem deveria ter tido autorização para construir uma barragem que representa ameaça à vida das pessoas. Porque a barragem chegou depois de Antônio Pereira. Antônio Pereira já existia quando a barragem foi construída”, finaliza a professora de Direito Constitucional da UFOP, Tatiana de Souza.
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