Estrada da Vale avança sobre local de captação de água de Antônio Pereira e ameaça patrimônios naturais e arqueológicos

Caráter emergencial das obras é questionado por moradores do distrito de Ouro Preto. Ruínas históricas da Fazenda dos Pitangui também estão sob ameaça.

Atualizado em 23/09/2020 às 11:25h

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Vale avança com estrada sobre área de captação de água de Antônio Pereira e limita acesso de moradores a trilhas e cursos d'água. Foto: Lui Pereira/Agência Primaz.
Vale avança com estrada sobre área de captação de água de Antônio Pereira e limita acesso de moradores a trilhas e cursos d'água. Foto: Lui Pereira/Agência Primaz.

A Agência Primaz acompanha desde o último mês o desenrolar da situação pela qual passa o distrito de Antônio Pereira. Com o anúncio do início das obras de descomissionamento da Barragem de Doutor, a Vale iniciou a construção de uma estrada em regime emergencial para otimizar o acesso ao local. Obras emergenciais são bem menos burocráticas e, portanto, menos exigentes do ponto de vista legal e ambiental, mas moradores questionam a necessidade, os reais objetivos da construção da estrada, além dos impactos ambientais, culturais e arqueológicos da construção.

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Na última semana, nossa reportagem foi a campo para verificar as reclamações dos moradores de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, sobre os impactos ambientais e no patrimônio histórico causados pela construção de uma estrada da mineradora Vale, para o descomissionamento da barragem de Doutor.

Em uma manhã de caminhadas por trilhas, constatamos o avanço da estrada sobre vegetação nativa, cavernas, ruínas e cursos d’água de grande importância ambiental, arqueológica e cultural para os habitantes do distrito. As obras preocupam os moradores, que também questionam o caráter emergencial adotado na construção da estrada.

Impactos na flora e na água que abastece a região

O local onde a estrada está sendo construída fica no entroncamento entre o Parque Natural Municipal das Andorinhas, a Floresta Estadual do Uaimii e o Parque Nacional da Serra do Gandarela, locais de grande importância hídrica. Dali nascem o Rio das Velhas, afluente da bacia do Rio São Francisco, o Rio Piracicaba e o Rio Gualaxo do Norte, afluentes da bacia do Rio Doce. Em um possível rompimento da Barragem Doutor, os rejeitos seguiriam novamente pelo Rio Gualaxo do Norte, como foi na ocasião do rompimento em 2015 da Barragem de Fundão, isso afetaria as mesmas comunidades que ainda se recuperaram do desastre.

Bruno Gurgel é biólogo, morador da Vila Antônio Pereira, e sua casa se encontra na ZAS (Zona de Auto Salvamento) da Barragem de Doutor. O atingido nos acompanhou durante a caminhada e nos contou um pouco sobre a situação hídrica do distrito. “Toda a região de Antônio Pereira recebe a água de captação antiga de cursos d’água, nascentes dessa região. Uma água que não é tratada, ou seja, consumida in natura, que precisa da preservação para se manter a qualidade dessa água que chega até a população”, explica.

Uma das preocupações do biólogo são os possíveis impactos sobre a saúde dos moradores. “Há séculos, essa captação é feita sem nenhum tipo de tratamento, então é a natureza que toma conta dela e leva até a população. Com a construção dessas estradas para o descomissionamento da barragem, as nascentes estão começando a ser impactadas e, em curto período de tempo, pode ser que as nascentes sequem ou diminuam muito a vazão”, afirma Bruno.

O ecossistema presente na serra é o de campo rupestre ferruginoso, um dos menos estudados e mais ameaçados no Brasil. As principais características dos campos rupestres são de vegetações que crescem sobre formações rochosas com altitudes a partir dos 900m. Tais características fazem com que diversas espécies sejam endêmicas, algumas com características muito peculiares por terem a capacidade de crescer entre metais tóxicos, por exemplo. A vegetação composta por gramíneas, arbustos e pequenas árvores exerce um papel fundamental na limpeza do solo e por consequência da água e outros materiais ali presentes, pois as plantas não só crescem entre os metais tóxicos, mas são capazes de promover a descontaminação do terreno através da absorção de metais pesados com suas raízes.

“A gente tem uma grande falta de estudos com relação a parte de fauna. Com relação à flora, a gente vê aqui uma savana metalófila, característica do quadrilátero ferrífero e em Carajás, no Pará. Existe uma taxa de endemismo, ou seja, espécies animais e vegetais que só acontecem nessa região, muito grande. Nós temos várias espécies aqui como as velósias, as candeias, que são específicas dessa região e estão na lista vermelha de espécies com risco de extinção. São regiões que você precisa de grandes estudos por parte das universidades e que são negligenciadas justamente porque 90% são propriedades privadas ou estão com exploração de minério de ferro”, esclarece o biólogo Bruno Gurgel.

Antenor Barbosa, secretário municipal de Meio Ambiente de Ouro Preto informou que foi feito um pedido de esclarecimentos à Vale em 31 de agosto de 2020 e que está prevista uma reunião entre o Conselho Municipal de Meio Ambiente (CODEMA) e representantes da mineradora. “O pedido de esclarecimento foi feito em 31 de agosto. Aí foi marcada uma reunião com as secretarias de Patrimônio e Defesa Social. Agora, estamos agendando uma reunião do Conselho de Meio Ambiente com a Vale para que a empresa possa nos esclarecer sobre os impactos ambientais e as medidas mitigadoras. Mas, as autorizações são dadas pelo órgão estadual”, informou o secretário de Meio Ambiente.

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Ameaças ao Patrimônio Histórico e Arqueológico

Do ponto de vista histórico e arqueológico, na região é possível observar resquícios de construções antigas, feitas através do empilhamento de pedras irregulares que podem datar do período colonial brasileiro. As ruínas são observáveis tanto nas proximidades da caverna e do local conhecido como “chuveirinho” (ponto de captação de água do distrito), quanto nas proximidades da barragem, em um local identificado pelos moradores como Fazenda dos Pitangui, que hoje conta com uma grande área de ruínas relativamente preservadas.

Ana Carla, outra atingida, também nos acompanhou durante a expedição. Ana é engenheira geológica e trabalhou durante 10 anos na Vale. Durante a incursão, ela nos aponta diversas estruturas geológicas como cavernas, vestígios de construções históricas, vestígios de mineração artesanal do séc. XVIII, além da morfologia de rochas características da região, algumas com alto teor de ferro em sua composição, o que poderia ser um indício de terreno passível de lavra pela mineradora.

Ana nos mostra, a partir da observação geológica observada na trilha, indícios dos primeiros ciclos de mineração praticados em Antônio Pereira. “A gente pode ver aqui as três metodologias usadas na época para garimpo de ouro preservadas: a grupiara, que são os desmontes dos morros, transportados por canaletas feitas à mão pelos escravos; o ouro de aluvião, pois é uma região muito rica em água; e, próximo à caixa d’água, nós temos caminhos de tropeiros ainda preservados e estruturas que parecem de mundéu, um outro tipo de garimpo que tinha na região”, pontua.

As ruínas da Fazenda dos Pitangui são um espetáculo à parte e os moradores temem que esse patrimônio também se perca. Localizadas nas proximidades de um dos pontos da estrada, são dezenas de metros de paredes em pedra de uma estrutura ainda sem qualquer tipo de preservação, vigilância ou projeto. De acordo com uma pesquisa do IFMG, a fazenda hospedou o imperador Dom Pedro II e a Princesa Isabel e servia pepitas de ouro junto da canjica para os hóspedes, como demonstração da riqueza da região. Na visita à Fazenda dos Pitangui, o imperador teria doado o púlpito, os portões e o coro da Gruta de Nossa Senhora da Lapa, ponto turístico e religioso do distrito.

Sobre esses patrimônios arqueológicos e espeleológicos de Antônio Pereira, Ana Carla é categórica. “O que a gente vê aqui hoje é um sítio arqueológico que deve ser preservado, deve levar isso para os órgãos competentes estaduais porque, independentemente da área ser de propriedade da Vale, são bens da União. As cavidades que nós vimos são protegidas por lei. A cavidade não é da Vale e sim da União. O que a gente está deparando aqui é uma violência muito grande a todo esse patrimônio”.

Nossa reportagem questionou Deise Lustosa, secretária municipal de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto, sobre que medidas de preservação desse patrimônio estão sendo tomadas pela prefeitura. A secretária informou que sua pasta solicitou uma visita técnica às ruínas, depois que a mineradora apresentou o projeto da estrada. “Depois que a gente informa à Vale que existem esses bens, a Vale nos apresenta quais são as situações de impacto, o que vai ocorrer e quais são as formas de mitigação que eles podem ter em relação ao bem preservado, que pode ser tombado ou inventariado, como é o caso. Estamos aguardando porque a gente já esteve em campo, já esteve com os arqueólogos e a empresa subcontratou uma empresa de patrimônio para poder fazer esses relatórios. Ainda não chegaram”.

“A Secretaria de Cultura e Patrimônio fez a solicitação à Vale para que conhecêssemos, em campo, onde está sendo realizada a obra da estrada. Essa visita era sobre o impacto causado às ruínas. Foi apresentado o projeto e a gente foi a campo para ver onde estava passando essa estrada. Eles [Vale] vão nos apresentar a complementação porque, inclusive, já estavam fazendo algumas alterações no percurso da estrada para poder preservar as ruínas”, informou Deise Lustosa.

A secretária disse ainda que não foi estabelecido um prazo para que a Vale apresentasse essa complementação do projeto, mas que “teve notícias” de que isso já está em andamento na mineradora.

Obras emergenciais: brechas na lei ambiental e interesses econômicos

Abundância de minério de ferro da região é apontada, por moradores, como principal motivo para Vale realizar obras emergenciais e desapropriações. Foto: Marcelo Sena/Agência Primaz
Abundância de minério de ferro da região é apontada, por moradores, como principal motivo para Vale realizar obras emergenciais e desapropriações. Foto: Marcelo Sena/Agência Primaz
Goethita botrioidal é uma formação de minério de ferro e pode ser facilmente encontrada nessa região. Foto: Lui Pereira/Agência Primaz
Goethita botrioidal é uma formação de minério de ferro e pode ser facilmente encontrada nessa região. Foto: Lui Pereira/Agência Primaz
Com 1/10 do peso da goethita apresentada na foto anterior, formação é vendida por mais de R$70 na internet.
Com 1/10 do peso da goethita apresentada na foto anterior, formação é vendida por mais de R$70 na internet.

O sentimento de que a emergência na construção da estrada não se justifica é generalizado entre os moradores, pois a principal justificativa para a permissão de uma construção emergencial é justamente a falta de alternativas ao empreendimento, algo que, de acordo com os moradores, não existe.

Ana Carla teme que, além do impacto imediato da construção da estrada, a mineradora faça da obra uma porta de entrada para explorar minério naquele ponto: “A obra emergencial é usada, várias vezes, como um artifício para se conseguir uma licença em locais que ela sabe que se tiver um EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto ao Meio Ambiente) feito previamente à construção, ele não vai passar, porque são áreas de preservação permanente [topo de morro, inclinação de 45°], matas de candeia, que são preservadas, velósias que é um tipo de canela de ema que também é uma espécie ameaçada, além da região ser um berço de nascentes”, revela.

“Se a Vale entrasse com um pedido de licenciamento, não conseguiria. Então ela usa a situação emergencial como brecha da lei. Uma página dentro da legislação ambiental, que permite você ‘rasgar tudo’ e ter 90 dias para legalizar”. (Ana Carla Cota)

Bruno Gurgel também questiona a necessidade de as obras serem construídas em regime de emergência. “A gente precisa acabar com essa ideia de que existe uma emergência nesse local para se fazer obras. Na verdade, você tem a MG-129 que passa aqui do lado e uma série de alternativas para que você não precise criar outra estrada. Já existe um acesso. Para que construir um outro acesso que impacta a população?”, questiona Bruno.

Intimidação e violação de liberdades

Seguranças da Vale marcam território e impedem comunidade de acessar áreas por onde está passando a estrada. Foto: Lui Pereira/Agência Primaz
Seguranças da Vale marcam território e impedem comunidade de acessar áreas por onde está passando a estrada. Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Durante a caminhada, nossa reportagem foi observada de perto por seguranças da mineradora e o terreno que antes do início da construção podia ser acessado por moradores e turistas para trilhas e passeios, hoje fechado, sob a justificativa de se tratar de uma área particular da mineradora.

Maria Helena, outra atingida também acompanhou nossa reportagem e nos guiou pelos terrenos onde ainda havia permissão para que andássemos. No caminho era possível observar o soterramento de vegetação nativa e estacas ou pinturas sobre o chão de pedra e caminhos de tropeiros com a demarcação do traçado da futura estrada.

“A Vale mente e a Vale mata. Só isso que a gente sabe e é isso que está acontecendo com a população de Antônio Pereira. (Maria Helena Ferreira)

A atingida explica que essa vigilância não foi pontual e se tornou um impedimento para que moradores acessem uma das poucas opções de lazer do distrito. “A segurança patrimonial já não nos deixa transitar nas serras, onde a gente transitava com tranquilidade. Muitas famílias faziam até piquenique na serra, por ser um ambiente muito puro, uma natureza muito preservada e hoje a gente é impedido até mesmo de chegar”.

Maria afirma que o descaso da mineradora e do poder público sobre os moradores do distrito é algo que se arrasta há muito tempo. “O nosso distrito está esquecido há muitas gestões. Antônio Pereira só serve para os resíduos. A CFEM vai para os cofres públicos e Antônio Pereira fica com as mazelas da mineração. A Vale mente e a Vale mata. Só isso que a gente sabe e é isso que está acontecendo com a população de Antônio Pereira.”

Apelos dos atingidos

Mariana Helena quer ser ouvida pela mineradora. Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Enquanto Ana Carla defende o embargo imediato das obras de construção da estrada até que se tenha a garantia de que o patrimônio será preservado, para Bruno também seria necessária a proteção ambiental da área através do tombamento. “Deveria ser feito um parque estadual para que a gente consiga preservar toda essa riqueza, tanto histórica, quanto de fauna e de flora dessa região”, argumenta o biólogo Bruno Gurgel.

“O que a população pede é socorro aos órgãos competentes. Venham até o local, vejam o que está acontecendo. Por que a Vale não apresenta outras propostas de caminhos viáveis para essa estrada? Têm os impactos à comunidade, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico. E cadê as alternativas?”, questiona Ana Carla Cota.

Maria Helena reclama da falta de diálogo entre a mineradora e os atingidos de Antônio Pereira. “A Vale nunca fez nenhum contato comigo nem com minha família, não sabe o que nós estamos passando. Enquanto comissão de atingidos também é da mesma forma. Todos os e-mails que a gente envia, a Vale não responde. A gente fica com a sensação de impotência, doente, com a saúde mental abalada. Enfim, é uma luta todos os dias”.

A falta de respostas da Vale aos e-mails foi constatada pela Agência Primaz de Comunicação que enviou questionamentos à mineradora sobre a construção da estrada em Antônio Pereira e, até o fechamento desta reportagem, não obteve qualquer resposta. Também não tivemos retorno dos questionamentos enviados à assessoria de imprensa do Governo do Estado de Minas Gerais, relacionados aos processos de licenciamento ambiental e fiscalização das obras.

Atualização

Após a publicação da reportagem, e depois de cinco tentativas de contato em diversas oportunidades nas publicações prévias sobre o assunto, a mineradora Vale encaminhou um e-mail em resposta aos questionamentos feitos pela publicação. Abaixo relacionamos os questionamentos apresentados por nossa reportagem à empresa, bem como as respostas obtidas.

Em relação aos estudos de impacto ambiental para a construção da estrada, a mineradora afirma que “Os estudos necessários encontram-se em elaboração para formalização do processo de regularização da intervenção em trâmite junto ao Instituto Estadual de Florestas (IEF), conforme legislação aplicável com base no regime jurídico de intervenção emergencial instituído por meio do art. 36 do Decreto 47.749/2019, do art. 8º da Resolução Conjunta SEMAD/IEF 1.905/2013, e art.33 da Portaria IGAM nº 48/2019, dentre outras normas estaduais.”

Quanto o questionamento sobre a necessidade da obra ser realizada em caráter emergencial, a mineradora afirma ter analisado um total de seis alternativas e a “opção de reforço da barragem e do dique de rejeito (foi pensada) como a solução que gera o menor impacto para o entorno da estrutura. Para a obra do vertedouro, foram selecionadas também seis alternativas, sendo adotado o mesmo critério da solução para descaracterização, ou seja, foi selecionada a opção de menor impacto para o entorno.”

Em relação às medidas de preservação e valorização dos patrimônios históricos e arqueológicos da região, a empresa afirma que “Como parte da equipe da Vale, uma arqueóloga realizou avaliação técnica em campo da ADA das obras emergenciais quanto à situação da proteção ao patrimônio cultural e sua correlação com o meio socioambiental. O levantamento e os estudos de campo, assim como consulta aos dados oficiais do IPHAN/IEPHA e Prefeitura de Ouro Preto para a região da Área Diretamente Afetada (ADA), nortearam a equipe de obra com relação a preservação das estruturas de interesse histórico e arqueológico. “

Por fim a empresa afirma que “assim que as ações mencionadas acima sejam concluídas, será finalizado e protocolado junto ao IPHAN, IEPHA e Prefeitura de Ouro Preto o relatório da situação da proteção ao patrimônio cultural e sua correlação com o meio socioambiental para as obras emergenciais da barragem de Doutor.”

Entretanto, não ficou claro qual a extensão das pesquisas ou ações as quais a Vale pretende desenvolver ou desenvolve na localidade, tampouco quais foram as cinco alternativas descartadas pela mineradora, tanto em relação à construção da estrada, quanto as opções de descaracterização da estrutura da Barragem Doutor.

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