Dezembro dos invisíveis

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Dezembro chegou nublado e quente. Rompida a noite, Dezembro chorou forte. Talvez porque estivesse arrebentando do seu peito a amargura acumulada do ano inteiro. Expectativas guardadas em alguma gaveta, projetos temporariamente suspensos. Alguns… para sempre. E se considerarmos que 2020 nos surpreendeu de um modo jamais imaginado, esvaziar o peito para (quem sabe?) fazer projeções futuras, é algo bem razoável. 

Chuvas fortes também podem nos acalmar. Rua deserta. A enxurrada leva as sobras do dia e até restos de pensamentos para qualquer lugar. E se esse tempo chuvoso parece prolongar a noite, um livro passa a ser a melhor companhia de quem já se recolheu para dentro de si mesmo. 

Nas mãos, um livro de contos, porque não se quer começar um romance. Narrativas longas exigem mais tempo, uma interlocução mais comprometida. Passados alguns minutos, uma criança se destaca. Ela observa os casais e espera, pacientemente, o momento exato para abordar o interlocutor. Vende flores. Oferece o produto perecível que, ironicamente, será ofertado de um amante para outro com promessas de amor eterno. E, assim, como tantas outras crianças, esse menino Lumbiá tem como escola a rua. Sigo a imagem da criança que se equilibra num mundo hostil. Ainda pequena já vê as artimanhas de adultos que se ocupam com os próprios problemas: amores urgentes, amores desfeitos, recomeços, a pressa, tarefas por fazer, compromissos sempre inadiáveis… enquanto ele, menino, torce para conseguir vender cada flor, antes que uma pétala caia e com ela a esperança de levar para casa o dinheiro necessário. 

Lumbiá entende as artimanhas da rua. Vende pouco a pouco a sua esperança. Às vezes, chora. Encara o movimento constante da vida. Mas, é uma criança. E é dezembro. Penso em interromper a leitura. Antevejo a cena próxima. Mas, o mundo não quer enxergar esse menino, por isso, talvez, decido prosseguir. Palavra mais palavra. A criança admira o presépio. Chove. Ele sente frio, mas toma uma decisão: hoje vai oferecer uma rosa ao menino que é tão frágil quanto ele. É véspera de festa. E o que são as festas de fim de ano, emendadas, cheias de cores? Ruas felizes. Felizes? Para quem? Pessoas seguindo imersas em seus mundos particulares. Letreiros escandalosos. Pacotes. Ceias. E quantas crianças por aí tentando um trocadinho! Evitar a fome. Evitar a surra. Evitar o relento. Evitar a noite escura entre outras crianças. Frágeis. Invisíveis. 

Sigo vendo Lumbiá aproximar do seu destino. Vence o segurança. Esse pequeno vê, naquele menino do presépio, o desamparo que também é seu. Mas a rua não está preparada para eles. Dezembro precisa mesmo lavar a alma, chorar por essas crianças que abandonamos todos os dias. 

Encerro a leitura do conto de Conceição Evaristo e fico pensando em quais projeções para o ano que se aproxima devemos fazer. Para o que, de fato, a representação do presépio nos aponta, se embotamos o olhar um pouco a cada dia? Por que é tão difícil enxergar Lumbiá? Temos medo, talvez, do espelho. Pegar a cota de responsabilidade diária pelas coisas não feitas, negligenciadas, é um peso difícil de carregar. Vidros fechados, o fone no ouvido, olhos na tela do celular: tudo para não ver a criança do sinal, do ponto de ônibus, do metrô, da rodovia, das esquinas em casas de papelão. Quisera o mundo abraçar Lumbiá, interrompido, ao proteger o Deus-menino. 

(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana.

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