Cenas cotidianas

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Dia desses corri até o supermercado, porque faltavam alguns produtos em casa. Presa à rotina do trabalho em home office, na pressa, nem se observa o cenário, sendo tudo feito maquinalmente: o mesmo trajeto e, geralmente, as mesmas pessoas pelo caminho, ou seja, os cumprimentos de sempre. Hábitos em uma cidade de interior.

No local, não peguei a cestinha para colocar os objetos da minha compra e me direcionei ao caixa mais vazio, segurando tudo de modo atrapalhado. Já bem próximo do cliente que estava à frente, deixei a sombrinha cair. Sem jeito, o rapaz olhou para mim, mas voltou rapidamente a atenção para o homem que estava ao seu lado. Coloquei as coisas no canto do balcão, apanhei a sombrinha, depressa, e fiquei na fila. Notei que o rapaz me olhou de novo, mas como se não quisesse ver ninguém.

Da maneira como estavam juntos, percebi que as três pessoas que estavam à minha frente faziam parte da mesma família, pai e dois filhos bem jovens. O homem conversava com a atendente do caixa, ambos falando baixo. De repente, ele separou alguns alimentos que ainda não tinham passado pela leitura, voltou o olhar para a mulher, fizeram algumas observações, mais um produto foi passado para o fim do balcão e outros foram entregues ao filho mais velho.

Nesse instante, pensei em caminhar para o caixa ao lado, mas vi que estava fechado, e no terceiro começava a ter certa aglomeração, porque uma senhora questionava o aumento do preço da carne, nesses tempos de pandemia. Olhei novamente para frente e o rapaz ficou sem jeito. Como ele tentava ficar de fora da conversa, não entendeu a ação do pai. Peguei, então, o celular que estava na bolsa para fugir da cena que começava a se desenhar diante de mim. Porém, como o espaço entre os caixas era mínimo, eu ainda estava ali participando dela, de algum modo, mesmo que de maneira intrusa, uma expectadora inconveniente. Dei um passo para trás. O pai falou novamente com o filho. Agora, com o tom de voz um pouco mais alto, disse que aqueles itens deveriam ser colocados na prateleira e apontou o local. Mas o jovem não entendeu. Então, aquele homem que já parecia muito cansado, falou ao mais velho, com carinho: “Guarde isso naquela prateleira. Amanhã, eu volto aqui e compro. Não precisa ser hoje”.

Tão rápida a ação, mas dentro dela coube um tempo infinito para o rapaz que não queria estar no supermercado, naquele dia. Não havia o que fazer. O dinheiro não era suficiente para levar todos os alimentos para casa. Enquanto isso, o ajudante guardava as compras em sacos plásticos transparentes, e o filho mais novo mirava um único potinho de iogurte. Depois do dinheiro contado e tudo conferido, a família começou a se ajeitar para sair dali, mas havia mais uma questão a ser resolvida, de modo que a cena ainda se desdobraria por mais uns minutos. A atendente quis explicar para o homem que ele teria de levar a compra com a ajuda dos filhos, porque o valor pago era inferior ao mínimo para a realização da entrega em domicílio.

Foi então que o mais velho colocou as mãos nos ombros do pai e disse que não tinha problema. O homem, porém, tentou intervir, porque moravam em um bairro muito afastado e a compra tinha sido cara. Mas não era cara o suficiente para o supermercado. O gerente se aproximou e tentou explicar, desejando ser gentil e sair rapidamente da situação constrangedora. Nesse momento, a atendente do caixa, o ajudante e o gerente confabularam. A mulher explicava a situação da família, querendo ajudar. No entanto, não teve jeito de colocar as compras no carro que sairia minutos depois para as entregas do dia, pois era uma regra do estabelecimento. O pai deu de ombros, e o irmão mais velho explicou ao mais novo qual sacola carregar. Em seguida, pegou a mais pesada, com o arroz, o açúcar e outras coisas. O pai sorriu com orgulho do filho, pôs na cabeça o outro saco e saíram daquele lugar que não entendia que a compra tinha sido cara para eles. Quando cheguei à porta do supermercado, a família dobrava a rua.

Voltei para casa com a cena que me acompanharia por toda a semana.

(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana

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