The Crown e o limite entre real e ficção
O reinado da Rainha Elizabeth II é contado em detalhes que a própria família real questiona.
- Kael Ladislau
- 18/01/2020
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Histórias baseadas em fatos reais geralmente tendem a levar o mote da narrativa ao misticismo, heroísmo, à vanglória ou mesmo à condenação pelo público em geral dos envolvidos.
São poucos os exemplos que poderiam ser citados que conseguiram caminhar na linha tênue entre ficção e realidade nesse tipo de obra. E talvez The Crown não seja um deles. Se você não é da Família Real Inglesa, talvez não se importe muito com isso.
As quatro temporadas da série original da Netflix causa rebuliço no espectador desde seu primeiro ano, em que conta a história da jovem Elizabeth que é alçada ao trono de monarca após a polêmica abdicação de seu tio e o reinado de seu pai, Rei George VI, coroado de forma surpreendente depois da decisão de seu irmão mais velho.
Esse caso histórico é o estopim inicial para a série ao longo de seus 10 episódios por temporada, já que a decisão do então rei Eduardo VIII colocava o protagonismo em uma família que, segundo a série da Netflix, não estava tão preparada para isso. O que pode explicar a dificuldade da jovem rainha, a partir de seus 25 anos, lidar com os conflitos do país e de sua família, principalmente.
As questões familiares reais, aliás, são as maiores polêmicas que The Crown tem levantado. Isso porque a riqueza dos detalhes é questionada por fontes próximas da monarquia.
Cresce ao longo das quatro temporadas, quando temos presença em cena de uma das mais populares e enigmáticas figuras reais, a então princesa Diana. E aqui poderíamos entrar em detalhes da série que talvez estrague a experiência de quem não viu e pouco conhece das histórias da então princesa de Gales.
Por isso, para evitar os spoilers, por mais que sejam históricos que possam ser, vale ressaltar a riqueza da produção. A série é cercada de figurinos (algumas peças são exatamente como eram na realidade) e de design de produção que conseguem nos levar aos anos em que determinado episódio é contado, sem muito esforço.
A fotografia é sempre muito certeira, dando o clima necessário para cada tensão, cada ambiente e o poder que cada personagem possui (ou não) em cena.
Nas atuações, não poderia ser diferente que o destaque seja para Claire Foy e Olivia Colman, ambas a Rainha Elisabeth na temporada 1 e 2, no caso de Claire, e 3 e 4 para a oscarizada Olivia.
A primeira consegue passar de forma muito fiel as indecisões e insegurança de uma jovem rainha posto a conflitos tão grandes em sua vida. Já Colman, completamente confortável no papel, mostra uma rainha já experiente e muito certa de suas decisões. Parece que o papel foi feito pra ela, o que não é nenhuma surpresa, já que Colman levou o Oscar de Melhor Atriz em 2019 justamente por fazer uma rainha, em A Favorita.
Não são, porém, as únicas que se destacam na série. A princesa Margaret, irmã à sombra da Rainha, também é vivida pelas ótimas Vanessa Kirby e pela consagrada Helena Bonham-Carter, de novo nas temporadas iniciais (1 e 2) e nas mais recentes (3 e 4) respectivamente.
Outro componente que não poderia deixar de ser citado é a trilha sonora. Cada temporada é emoldurada por músicas que remetem ao seu tempo, indo de Ella Fitzgerald a David Bowie, passando pelo consagrado Hans Zimmer no tema de abertura.
Não é pra menos que a série tenha tido tanto sucesso, mesmo que a contragosto da rainha e seus familiares, na vida real (cabe o duplo sentido). Por mais que precisamos, sempre, lembrar que é preciso muito mais do que a série para lembrar o que de fato aconteceu na história, a obra consegue passar para a tela a sensação de que, na realeza, nem tudo sempre é mágico.
A coroa é pesada e sobra o fardo para outros membros além da rainha carregar. Desde seu marido, o príncipe Filipe, sua irmã e até mesmo seus filhos, com mais força a Charles, o herdeiro do posto que ocupa sua mãe.
Mais do que mostrar as maravilhas que poderiam ser estar nessa posição, a série consegue levar as consequências que esse modelo de governo tem, principalmente, a seus membros reais. Algumas horas, ainda que vivendo numa democracia, hoje, tão fragilizada, podemos até mesmo questionar o quão necessário é ainda a monarquia.
Que, por sua vez, é mostrada em um processo de transformação com fatos reais de um modelo ainda muito tradicional para um mundo já mais evoluído e moderno, até a década de 80, época abordada na quarta e última temporada.
The Crown é um deleite para quem gosta desse tipo de obra, a se observar que nem tudo é necessariamente como se conta. O lado documental deve ser sempre visto naquele limiar entre real e ficção, para não tornar tudo muito mítico, heroico, vangloriado ou mesmo condenável. Pra quem já assistiu, é esperar as novas temporadas.
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