A normalização da exclusão via cultura do cancelamento

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

Compartilhe:

[wpusb layout="rounded" items="facebook, twitter, whatsapp, share"]

Vivemos um movimento social que aponta para o estabelecimento do diálogo, promovendo a abertura de espaços para que as minorias possam ter lugar em direção ao enfrentamento da exclusão imposta, há séculos, por grupos elitizados. No entanto, na contramão da valorização da democratização do direito de ir e vir e de ter a oportunidade de se colocar a vista de todos para o debate saudável, assistimos ainda ao fenômeno da chamada cultura do cancelamento. Significa dizer, nessa perspectiva, que há algo de muito ruim acontecendo diante dos nossos olhos, mas que, por inércia ou escolha consciente, essa ação é legitimada, reforçando a exclusão de pessoas em diferentes situações.

No Brasil, as culturas indígena e africana sempre foram excluídas. Muitos textos tratam da formação da sociedade brasileira, considerando a colonização como marco zero da nossa cultura. Em outras palavras, é a visão do outro, ou seja, a do colonizador, que está em foco. Desse modo, ainda é comum observar o apagamento sobre os grupos indígenas e também sobre os povos africanos trazidos, violentamente, para o trabalho forçado na colônia. Muitos documentos e narrativas oficiais corroboram para uma visão única e de privilégio a um grupo de poder, e o efeito disso é assustador, porque elimina histórias, identidades, memórias e outras perspectivas sobre a nossa formação como povo e cultura miscigenados.

Ao longo do tempo, temos visto uma tentativa de mudança de paradigma por quem entende que essa é uma visão excludente e limitadora. O problema é que nos acostumamos a nos preocupar com o que nos atinge diretamente, para depois pensar na dor do outro. Nossa história aponta para a violência infligida às minorias, mas entendida como uma narrativa sobre a qual nada podemos alterar. Empurra-se, então, para aquele que sofre a culpa por tudo o que viveu. Chegamos ao ponto da normalização da exclusão, e, desse modo, nos absolvemos. Não somos, pois, algozes e nem cúmplices de coisa alguma. Seguem-se os dias e o curso normal das coisas.

Mas, as minorias espalhadas por toda parte incomodam, pois não são tão invisíveis assim. Há, ainda, aqueles que insistem em gritar. E com a popularização dos meios de comunicação, do acesso a espaços antes ocupados somente por grupos de poder, esses gritos vão encontrando eco em outras vozes antes abafadas. Vê-se, assim, uma oportunidade de rever a história, de esclarecer pontos pouco ou nada debatidos nos diferentes contextos sociais. Ponto para a democracia e para o país, já que outros grupos minoritários ganham força também.

Poderíamos, enfim, seguir mais confiantes por esse caminho, mas um movimento negativo tem ganhado força, sobretudo, nas redes sociais, que é o da cultura do cancelamento. Se esse cancelamento estivesse direcionado a atitudes de quem fere os direitos humanos, seria razoável pensar numa espécie de resposta ao que não se espera numa sociedade democrática, ou seja, uma forma de reivindicar uma reparação a um mal feito. Todavia, tornou-se comum “cancelar”, no sentido de banir, aquele que me desagrada. Ao me deparar com um corpo que não considero bonito, cancelo. Não gosto do vídeo postado pelo artista, cancelo. Considero uma cultura inferior, cancelo. O influenciador digital faz um comentário com o qual não concordo, cancelo. Cancelo pessoas, como uma forma de perseguição, de apagamento do sujeito. E ainda buscamos adeptos para robustecer o cancelamento. Reforçamos as bolhas sociais nas quais grupos se recolhem e vivem em completa alienação. De modo algum importa o mal causado ao outro. Talvez, haja mesmo satisfação diante da violência imposta a quem excluo de determinado lugar.

Sem me ater especificamente a um fato recente de cancelamento que tem repercutido nas redes, tento entender o que faz com que pessoas escolham o caminho inverso ao do diálogo em que se valorize a diversidade de pensamentos, de escolhas, enfim, à liberdade de expressão e ao direito de ir e vir, para promoverem o linchamento verbal direto ou pelos meios virtuais. Discursos violentos não têm como ser interpretados como resposta a uma ação infeliz ou como forma de expressar opinião. O ato de cancelar alguém que tenta ser visto diante de um público é perverso e denota total falta de empatia. Existe o ditado popular que diz “respeitar para ser respeitado”, mas, quando me coloco na posição de cancelador, quebro essa prerrogativa e faço dos espaços de comunicação uma arena para gladiadores, restando a mim duas opções: na inércia, opto por fazer parte da plateia bestial, ou parto para a briga. Tristes tempos.

(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana

Veja Mais