Tempos de chuvas

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

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Chove sem parar. Chuva mansa, torrencial, braba. Céu ensandecido. Esgotos entupidos. Avenidas alagadas. Pais perdem filhos, filhos perdem pais. Choro, lamentação, sofrimento. Casas desabadas, lama engole mobílias e vidas. Caio na rua. Sombrinha para um lado; compras, para o outro. Procuro abrigo em supermercado. Noticiário televiso transmite imagens de desastre ao vivo. Moça do caixa bufa de raiva. Compro maçãs, enquanto aguardo a tempestade abrandar. Tento desviar o olhar da funcionária. Ela treme. Presumo que esteja estressada. ‘Mês dos infernos, senhora. Perdi tudo…’ Lamento. O que me resta dizer? Sinto. Pelo bairro de cá, águas invadiram casas. Bueiros entupidos, lixo boiando na enxurrada. Olho desolada para o cenário caótico. Culpa do aquecimento global, do homem, da natureza, das rezas sem fé, do carma? Santa Bárbara, rogai por nós! Enchente. Chove, alaga, desaba, desabriga. Volume de chuva além da conta. Quem mandou incendiar a mata? Jogaram lixo por todos os cantos. Campanhas educacionais sobre a correta acomodação do lixo, onde foram parar? Na boca de lobo entupida, na água que ocupa ruas e casas. Cansei! Todo ano é a mesma previsão: chuva, desabrigados, mortes. Ainda não saí do supermercado. A fila do caixa aumenta. A funcionária não almoçou nem foi ao banheiro.

Águas do céu caem mansas. Meu pé dói. Os sintomas da gastrite freiam meu estômago. A água turva que reflui sobre o passeio é misturada com esgoto; fede! Nunca vi tanto lixo flutuar. A garrafa de refrigerante surfa nas águas encardidas. Ar fétido. Imagino o número de ratos e baratas perambulando assustados. Ninguém quer morrer desse jeito, de jeito nenhum, a não ser os masoquistas. Não tenho apego desmedido, vou na hora H. Autoestima é o que queria falar com a moça do caixa. Desacelere, pula fora, tente outras vezes. Volto outro dia. Falei para minha professora que seria escritora. Ela riu. Disse que moça do interior tinha que caçar bom marido. Autoestima foi a palavra da educadora. ‘Você tem em excesso’. Aprendi a dosar a autoestima. O homem tem autoestima em excesso que esqueceu da prevenção. Não existem salvadores, depois que as águas entornam. Quem vai acabar com esse caos? Fé nas orações, terapias e nos remédios psiquiátricos. Sofrimento que não acaba mais. Todos sabem. Acreditam no apocalíptico? Água e fogo! Fogo e água! Não fizeram o dever de casa, não amaram o próximo feito a si mesmos; não perdoaram, não souberam conviver, dividir o pão, a renda, as despesas. A moça do caixa? Recordo sua expressão cansada. As ruas alagadas, o mau cheiro, a garrafa de refrigerante boiando. A descompensacão da autoestima. Fecho a sombrinha. Entro na residência. Jornais e folhetos de vendas espalhados no terreiro. A caixa de correio, vazia. Apanho os papéis. Bufo de aborrecimento. Sempre pedi para colocarem os jornais na caixa. Resiliência. Volta a chover. Amanhã vem mais… Quem mandou incendiar a mata? Quem mandou as autoridades negligenciarem as campanhas educacionais do correto acondicionamento do lixo? Quem deixou edificar em encostas e entorno de mananciais?

(*) Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura, Especialista em Arteterapia, Artes Visuais e Doutoranda em Educação. Membro da Casa de Cultura- Academia Marianense de Letras, da AMULMIG e da ALACIB-MARIANA. Autora de 18 livros,

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