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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A cor da fome

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É manhã de sábado e a rua está relativamente movimentada. Perto de uma mercearia, algumas pessoas conversam, enquanto aguardam a vez de serem atendidas. Vozes, passos, som de buzinas e recorte de músicas das casas vizinhas se misturam, ao mesmo tempo que abafam o som seco de latas vazias pisadas por uma garotinha.

O dia está nublado e o sol tenta, sem sucesso, vencer as nuvens. O corpo franzino da menina sente os efeitos do vento. Para aquecer, bate com mais firmeza as latas que coloca enfileiradas no canto da calçada. Um homem passa rapidamente e chuta uma delas. Balbucia algumas palavras que deixam a garotinha constrangida. Evitando outra reprimenda, recolhe uma a uma bem depressa, mas deixa cair duas delas. O homem comenta com o dono da mercearia que não dá para tolerar bagunça próximo ao estabelecimento. Imediatamente, a conversa toma outro rumo. Uma senhora diz que tem ficado incomodada com as aglomerações próximas ao centro comercial, porque “já não é possível caminhar tranquilamente pelas ruas. Há tantos desocupados pelos cantos. O que a gente pode fazer?”

Nesse momento, um menino vê uma caixa de papelão, mira e arremessa uma latinha de refrigerante. O alumínio bate contra o poste e espirra o conteúdo, exalando o cheiro enjoativo do líquido açucarado. O pai brinca com o seu filho, solicita atenção e arremessa outra lata. Acerta o alvo e os dois seguem caminho. A menina corre para o outro lado da rua, pega os dois recipientes e os amassa ali mesmo. Suas mãos pequenas ficam meladas, sente um certo desconforto por isso. Corre para perto da sacola onde estão bem guardadas as outras, pois precisa refazer a contagem. Ao se levantar, pensa em limpar as mãos na roupa, mas percebe o desprezo no olhar do homem que continua repreendendo a sua presença. A conversa está acalorada. Tem mais gente na fila. Todos querem dar a opinião sobre como resolver a situação do país.

Ninguém sabe, mas a menina ainda não comeu neste dia. O sol começa a ficar um pouco mais forte. Ela olha para o céu, aperta os olhos e tenta decifrar as horas. É preciso chegar em casa com a sacola cheia. Um vizinho vai comprar o que a família conseguir juntar durante a manhã. A mãe é viúva, está desempregada e tem quatro filhos. O mais velho morreu. Os últimos dias foram de chuva constante. Não há comida em casa.  Como qualquer criança, ela tenta brincar um pouco. Fecha um dos olhos e, mirando o sol, imagina aquela bola amarela como uma grande bola de sorvete. Inspira forte e o cheiro do refrigerante a deixa enjoada. Olha para as mãos, mas não há como se limpar. Há sóis em suas mãos. Bolinhas amarelas. Demora um tempo para conseguir distinguir novamente as pessoas ao seu redor.

Ainda enxerga o mundo um pouco em amarelo, mas não há mais um imenso sorvete em sua frente, nem mais de um sol a brincar de roda em suas mãos. O cheiro da carne se espalha pela rua. A fila na mercearia se agita. A criança não distingue bem o que se passa ao seu redor. Alguém carrega uma sacola que pesa um pouco mais de um quilo. O perfume da carne fica insuportável. Tem vontade de sentar, porém o medo e a fome a entorpecem. Seu pequeno dorso se contrai violentamente. Não quer respirar e sentir o aroma proibido de novo. Mas é inevitável. Por um instante, está em casa e a mesa é farta. É um sábado bom. De repente, sente um puxão no braço magro. Uma criança um pouco mais alta a traz de volta à realidade. O menino fica zangado porque não conseguiram muitas latinhas. Deveriam ter saído na tarde anterior. Mesmo com chuva, talvez tivessem conseguido alguma coisa. O homem se impacienta. Cientes da ameaça, pegam as duas sacolas com o alumínio amassado. Correm. As pessoas ficam momentaneamente aliviadas, enquanto aquelas crianças, assustadas, seguem fugindo da fome.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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