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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Xingar o árbitro no estádio é crime?

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

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Foto: Burst by Shopify

Jogo difícil, final de campeonato. Você está no estádio com outras 50.000 pessoas cantando e apoiando seu clube do coração. O empate vai dando o título ao seu time, que venceu a primeira partida fora de casa. Em um escanteio para a equipe adversária, alguém cabeceia a bola dentro da área e ela bate no braço do seu defensor. Pênalti assinalado.

Cinquenta mil vozes, incluindo a sua, emergem contra o árbitro. Das arquibancadas, sai todo tipo de impropério. Você descobre xingamentos que nunca suspeitava que existiam. Até esboça um sorriso quando escuta alguns, mas rapidamente os esquece, pois a raiva volta a tomar conta. Aos poucos, a poeira vai baixando e as ofensas vão diminuindo. Enquanto alguns torcedores ainda resmungam, outros começam a se conformar com a marcação, depositando as esperanças no goleiro. “Hoje ele vira herói” – alguém comenta ao seu lado.

O atacante adversário já está com a bola na marca da cal, mas não foi autorizado a cobrar. O árbitro está com a mão na orelha, enquanto ordena, em vão, que os quatro ou cinco jogadores que o rodeiam se afastem. Subitamente, o árbitro desenha um retângulo com as mãos no ar e começa a correr em direção à linha lateral do campo. Ele vai olhar o lance no VAR.

Em alguma sala fechada, dentro daquele emaranhado de corredores e escadarias que compõem uma arena de futebol, um colega de profissão do ‘professô’ não concordou com a marcação. Com a tecnologia a seu favor, chamou o árbitro de campo para revisar o lance. Ah, o árbitro de vídeo… O VAR é como o STF de uma partida de futebol. É o último recurso. A diferença é que o VAR costuma ser mais assertivo nas decisões. Ponto para o esporte.

A multidão está eufórica com a revisão e os torcedores mais próximos da cabine fazem uma pressão absurda no responsável por apitar a partida. Ele agora volta para o campo. Já tomou sua decisão. Não concordou com a interpretação do colega da sala fechada. Pênalti confirmado. O estádio explode em revolta. Os xingamentos são ainda mais efusivos e diversificados que os anteriores. Nem os mais comedidos poupam o homem do apito. E aí, xingar o juiz é crime?

Em teoria, sim. O artigo 140 do Código Penal dispõe sobre o crime de injúria. ‘A regra é clara’, diria um ex-árbitro.

“Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

Injuriar é xingar, desqualificar ou expor defeitos que agridam a honra ou moral do indivíduo. O parágrafo 1° trata de hipóteses em que a pena pode não ser aplicada: quando o próprio cidadão é responsável diretamente pela injúria ou quando, caso seja injuriado, imediatamente retruque também com uma injúria.

  • 1º – O juiz pode deixar de aplicar a pena:

I – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;

II – no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.

Aqui, não tem conversa. Não adianta dizer que um erro profissional (ainda que seja um pênalti absurdo!) justifique uma injúria. Ou seja, na teoria, xingar o juiz é crime. A aplicação disso, na prática, é muito diferente.

Salvo a exceção que vou mencionar adiante, é muito difícil que um torcedor seja punido criminalmente por xingamentos no estádio. Uma multidão gigantesca canta, em coro, que o árbitro deve ir para ‘aquele lugar’. O que o Estado pode fazer? Procurar o cadastro das 50.000 pessoas que compraram ingresso e ajuizar 50.000 ações? Para que, no próximo jogo, e nos outros jogos da rodada, tenha que fazer a mesma coisa?

Neste contexto, a título de curiosidade, a média de público do Campeonato Brasileiro de 2019, o último antes da pandemia, foi de 21.237 pessoas por jogo. Como são 10 jogos por rodada, em média o público do Brasileirão foi de 212.370. Esse é o número médio de pessoas que frequentaram os estádios antes das medidas de distanciamento social. Isso, a cada rodada. São 38 delas ao longo da competição. Em última análise, ainda que nem todo mundo xingue o árbitro, é completamente inviável para o Estado propor qualquer medida penal neste sentido, uma vez que que o Ministério Público teria que provar que cada uma das pessoas processadas efetivamente xingou o juiz, que cada pessoa tem o direito de se defender, de recorrer da decisão, etc. Um esforço e um custo humanamente impraticáveis.

Punir o clube é uma opção? Sim, mas aí não há que se falar em crime, objeto deste texto. De acordo com o Princípio da Individualização da Pena, previsto no artigo 5°, inciso XLVI da Constituição Federal, a pena, no Direito, é individual. Não pode se estendê-la ao time. O clube pode ser punido apenas cível e administrativamente, caso seja responsabilizado pela conduta de seus torcedores, e tenha que indenizar o juiz, por exemplo. O que também cabe discussão e não costuma ocorrer.

Isso não quer dizer que qualquer comportamento ofensivo vá passar batido. A Confederação Brasileira de Futebol tem se empenhado bastante nessas situações, especialmente em relação às injúrias de cunho racial e homofóbico, trazidas no parágrafo 3° do artigo 140:

  • 3º: Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Pena – reclusão de um a três anos e multa.

Esse tipo de injúria, além de mais grave, é mais facilmente identificável, uma vez que, reprovada por grande parte dos torcedores, pode ser denunciada pelos próprios. Quando uma parte considerável das arquibancadas profere gritos racistas ou homofóbicos, não se tratando de atos isolados, a CBF tem punido duramente os clubes. São punições administrativas, e não penais. A exclusão do Grêmio da Copa do Brasil de 2014, após vários de seus torcedores terem se referido ao goleiro Aranha, da equipe adversária, como ‘macaco’, é um claro exemplo. Além disso, os torcedores que forem identificados (por câmeras de TV, por exemplo) podem ser punidos tanto na esfera cível quanto na criminal.

Em suma: xingar o juiz no estádio configura crime, sim. As pessoas não são denunciadas por isso pela inviabilidade de processos desse porte. Quando as ofensas descambam para o lado racial ou homofóbico, a CBF é bem menos tolerante e age com muita rigidez, punindo severamente os clubes. O Estado também. Caso torcedores sejam identificados cometendo um desses atos, podem ser levados à Justiça Criminal, e à Justiça Cível, em um pedido de indenização por danos morais. Via de regra, injúrias comuns não têm trazido grandes consequências. Injúrias raciais e homofóbicas, sim. Tanto para o clube quanto para quem é identificado. Para a lei, injúrias étnicas, religiosas, contra a pessoa idosa ou deficiente são tão graves quanto as raciais e homofóbicas. Mas são muito menos comuns em estádios.

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Vitor Morato é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e pós-graduando em Direito Público. Instagram: @vitormorato.
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