Notícias de Mariana, Ouro Preto e região

Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Lançamento do livro “Aqui tinha uma Escola”

Evento ocorreu nesta segunda-feira (21), na Escola Municipal Bento Rodrigues, em Mariana

Compartilhe:

Adriane Hunzicker fala sobre o livro “Aqui tinha uma Escola, na cerimônia realizada na Escola Municipal Bento Rodrigues, provisoriamente funcionando em Mariana – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz
Publicado pela Editora Appris (Curitiba/PR), foi lançado nesta segunda-feira (21), na Escola Municipal Bento Rodrigues, em Mariana, o livro “Aqui tinha uma Escola: Vozes docentes sobre o rompimento da barragem de Fundão”, escrito por Adriane Cristina de Melo Hunzicker. A obra é traduz a angústia vivenciada pelos professores durante e após a tragédia e suas experiências ao longo dos últimos quase sete anos, mantendo a escola funcionando em instalações provisórias e adaptadas, à espera do fim da interminável obra de construção do reassentamento.

*** Continua depois da publicidade ***

*** 

No dia 5 de novembro de 2015, ao contrário de sua rotina habitual lecionando na escola do subdistrito de Bento Rodrigues, Adriane Hunzicker não estava na sala de aula, por ter conseguido agendar, um dia antes, de última hora, uma consulta médica em Belo Horizonte. “Eu estava lá na sala da médica e meu telefone começou a tocar, tocar… Todo mundo [perguntando], você está viva, você está bem? Eu falava, ‘gente, eu tô bem, uai. O quê que foi?’ Aí começaram a falar, ‘a escola está debaixo da lama, a barragem rompeu’, aquela coisa toda”, descreveu a autora do livro, relembrando o momento em que foi informada.

Segundo Adriane, foi um momento de “paralisia total”, de incerteza em relação ao que tinha acontecido com seus colegas, alunos e pessoas de sua convivência diária na comunidade. “Voltei pra Mariana e fui direto ao Poliesportivo pra saber notícias. Só passava pela minha cabeça que meus colegas tinham morrido, meus alunos… Eu só via aquelas imagens das pessoas que eu convivia no meu dia a dia”. Com o passar do tempo, segundo Adriane, começou a surgir o sentimento de gratidão pelo salvamento de tantos, junto com a indignação pelo descaso com a vida de uma comunidade inteira, devido à instalação de uma barragem sobre suas cabeças.

“[Foi] nesse correr para se salvar, nesse sentimento de vida ou morte, de dor, de sofrimento, de luto que a escola passou por muito tempo, que eu comecei a carregar um sentimento de indignação. Por uma barragem tão próxima à escola, a sirene não tocou, a gente não tinha informações de segurança na escola, a gente não sabia como reagir”, contou Adriane ao relatar a motivação para fazer mestrado na UFMG, quando, “por obra do destino”, conheceu a professora Maria Isabel Antunes-Rocha, que estava iniciando uma pesquisa em Mariana e Barra Longa, sobre escolas atingidas. Foi assim, relata Adriane, “que começou essa elaboração mais teórica, essa compreensão desses espaços, entendendo a escola de Bento como uma escola do campo (…) esse movimento da educação no campo, dos povos do campo, dos garimpeiros, dos extrativistas e dos indígenas”.

Local onde “tinha uma Escola”, no subdistrito de Bento Rodrigues – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz (05/11/2017)

A autora dedicou o livro “às dezenove pessoas que tiveram suas vidas ceifadas pelo ‘tsunami’ de lama de rejeitos que vazaram da barragem de Fundão”, a todos os atingidos que “tiveram seus projetos de vida alterados”, aos seus companheiros de trabalho na Escola Municipal Bento Rodrigues e à própria comunidade escolar (pais e alunos), desejando que eles “continuem resistindo às atrocidades que lhes foram impostas” desde o dia do rompimento da barragem. Mas, em especial, Adriane dedicou e agradeceu aos professores participantes da pesquisa que originou o livro, pela confiança que depositaram nela, aceitando “narrar sentimentos e memórias do que certamente foram os piores momentos de suas vidas, quando tiveram que correr da lama para não morrer”, estendendo também a homenagem aos que, assim como a autora, “não estavam na escola naquela tarde, mas participaram do processo da espera pelo resgate das vítimas, do acolhimento nos hotéis, da escuta atenta à dor dos nossos alunos que perderam tudo que tinham”.

Fátima do Carmo Resende, professora da E. M. Bento Rodrigues, também não estava no local no momento do rompimento da barragem porque trabalhava apenas no período da manhã. Ela falou à reportagem da Agência Primaz a respeito de seu sentimento ao narrar o ocorrido para Adriane Hunzicker, reforçando a questão da escuta dos alunos mencionada pela autora. “Eu fiz [o depoimento] de muito boa vontade, porque a Adriana é nossa colega de escola, trabalhava aqui e tal. Mas é uma coisa assim que a gente não quer mexer, sabe? Mas aí eu comecei a falar de tudo que aconteceu, do sentimento, da dificuldade que a gente teve para trabalhar. A gente não conseguia dar aula, toda hora um me lembrava de alguma coisa, contava uma história. A gente não conseguia trabalhar porque eles precisavam falar, precisavam colocar para fora. Aí a gente elaborou um projetinho para eles escreverem, contarem suas histórias. E a gente percebeu que isso foi muito bom para eles, ajudou muito”, ressaltou a professora.

Essas páginas narram o ponto de vista dos professores e das professoras sobre esse rompimento e sobre o pós-rompimento. São vozes de docentes, de professores que lecionam nessa escola, mas também estão as minhas vozes como docente e, agora, como pesquisadora nessa área, nesse campo da educação, mineração. Mas vale ressaltar que vocês, professores e professoras são os principais protagonistas nessa história (Adriane Hunzicker)

Algum tempo depois do rompimento as crianças de Bento Rodrigues começaram a dividir espaço com as crianças de uma escola na sede do município e, atualmente, utilizam uma casa e uma construção anexa, adaptada para funcionar como escola, enquanto não é finalizada a construção do chamado Novo Bento. Esse fato, e essa transitoriedade, foi mencionado por Adriane Hunzicker, ao falar do trabalho de seus ex-colegas e do impacto disso no dia a dia da escola, bem como no futuro da instituição. “Para além da estrutura física, houve mudanças de endereço, primeiro no Rosário e depois aqui, nessa condição de provisoriedade que já perdura mais de seis anos, à espera da escola nova. Hoje vocês estão aqui discutindo essa escola, essa transição. E parece que isso já está ali pronto, está pertinho, mas eu vejo nas falas de vocês que é algo tão ainda distante, né? Que é uma espera, uma espera sem tempo para acabar, sem saber ao certo. Também houve alterações nas práticas pedagógicas e administrativas, na função social dessa escola. É uma organização social completamente diferente da que se tinha em Bento Rodrigues. Portanto, as páginas desse livro narram o ponto de vista dos professores e das professoras sobre esse rompimento e sobre o pós-rompimento. São vozes de docentes, de professores que lecionam nessa escola, mas também estão as minhas vozes como docente e, agora, como pesquisadora nessa área, nesse campo da educação, mineração. Mas vale ressaltar que vocês, professores e professoras são os principais protagonistas nessa história”, concluiu Adriana.

Eliene Geralda dos Santos Almeida é diretora da E. M. Bento Rodrigues desde 2013 e ressaltou a importância de Adriane ter sido professora da escola, dando ao seu trabalho uma conotação mais próxima da realidade vivida pela comunidade escolar e do próprio subdistrito. “Quando ela informou ‘pra’ gente que estava com esse projeto, aí eu já fiquei muito curiosa de ver o resultado final. Porque ela é uma pessoa que já passou pela escola, a gente conhece, tem essa sensibilidade, né? Então já fiquei muito curiosa. Eu já recebi outros livros de outras pessoas que escreveram sobre o rompimento da barragem, não sobre a escola, mas eu não tive tanta curiosidade de ler. E o dela eu já ‘tô’ doida ‘pra’ chegar em casa, começar a ler, porque eu sei que ela está contando histórias nossas”, afirmou Eliene, sem esconder sua ansiedade.

A diretora também ressaltou a importância do papel da escola para a comunidade de Bento Rodrigues como local de reunião e como a única instituição que permaneceu em atividade, apesar das dificuldades, depois do rompimento da barragem. “Por incrível que pareça, quando ela [Adriane] teve essa fala aqui sobre a importância da escola ‘pra’ essa comunidade, mesmo antes, quando eu exercia outras funções na escola, eu sempre falava isso para todo mundo. Que a escola de Bento Rodrigues é uma referência para a comunidade. Porque é aqui que tudo acontece, né? Lá em Bento era mais intenso porque havia as festividades, os eventos da comunidade, a Festa Junina… Tudo isso acontecia dentro da escola, aqui um pouco menos, porém eu sempre falo que a comunidade de Bento permanece unida através da escola. Foi a única entidade, vamos dizer assim, que não se desfez, ao longo desses anos. Tudo ficou mais distante. Mas a escola, ela ainda continua aproximando as pessoas de Bento”, finalizou Eliene.

Marcelo Lures dos Santos, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), no texto da “orelha” do livro, afirma que “Adriane sistematiza informações que evidenciam a forma predatória e negligente com que a mineração atingiu a população e o meio ambiente em toda a extensão do Rio Doce”, e “traz à tona ainda uma temática pouco abordada, mas de fundamental importância: o silenciamento das escolas em relação à mineração e às barragens em comunidades cercadas e profundamente influenciadas por esse meio de produção”, constituindo-se em “importante produção, pioneira na defesa e discussão de uma abordagem crítica da mineração como tema transversal na educação básica”.

O livro “Aqui tinha uma Escola: Vozes docentes sobre o rompimento da barragem de Fundão” pode ser adquirido diretamente no site da Editora Appris, em versão impressa (R$55) ou digital (R$24).

*** Continua depois da publicidade ***

Poema

No início do evento de lançamento do livro, Sérgio “Papagaio”, garimpeiro em Barra Longa (MG), atingido pelo rompimento da barragem de Fundão e, atualmente, editor do jornal “A Sirene”, declamou o poema “O Sonho dos Atingidos”, de sua autoria:

Sérgio “Papagaio”, editor do jornal “A Sirene”, declama o poema “O Sonho dos Atingidos” – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz

Na noite passada eu tive um sonho: era uma pintura. Na tela, o artista dava vida à lama que saía de Regência e subia, voltando pra Mariana. Foi aí que percebi, mais pessoas também sonhavam, eram muitos os sonhadores, uns eu já conhecia, outros só naquele dia.

O que mais comovia, os sonhadores eram todos atingidos da Bacia. A louca lama subia na tela do Rio Doce, sob a regência do pincel do artista misterioso. As águas pintadas de branco, as margens a cor verde recebia. A lama que subia não mais atingia. Ao lado, numa nuvem, o pintor me conduzia. Subimos juntos os dois, pintando a aquarela da Bacia.

Eu participava com enorme alegria. Peixe, bicho, mato, a pouco eram pintados com suprema magia. Os Krenaks se emocionaram ao ver ser pintado “Watu” e, no íntimo, ao artista confidenciam: “O ÍNDIO PERTENCE AO RIO, O RIO PERTENCE AO ÍNDIO”.

E os aruanãs, agora purificados das profundezas do Doce, agora emergem cantando a esperança e, numa relação ecumênica, ajudam a pintar a aldeia da aliança. O grande artista sobe pintando a natureza. Por um tempo fui deixado num canto e, com a intimidade de dois irmãos, ele colhe meu pranto e, com ele, num instante de pura beleza, pinta a velha Barra Longa no dia que completava 315 anos.

E a Barra, em uma sessão de agradecimento todo materno, dá um beijo em mim e outro na tela. O pintor purifica o Carmo e o Gualaxo, rios que foram obrigados a carregar a morte. Pinta Gesteira, Campinas, Barreto, Pedras, Paracatu, Gama, Camargos. E o velho Bento retoma a aparência de um rebento.

E com uma tinta especial, cedida pela lua, pinta as pessoas nas ruas. Agora, com divina precisão, o relógio para e começa uma pintura de renovação. Tudo, até o velho é remoçado. O pintor apaga a morte. Abandona o pincel e com o coração tinge 19 corpos tornados à vida, e um ser pequenino foi para dentro da barriga. Sobrepõe à morte, à vida e ao luto, a luta. Depois de concluída a obra e a natureza reconstituída, não vi mais o pintor. Só um facho de luz e, no rodapé da tela não assinada, tinha o desenho de uma cruz.

***