Como funciona o réu primário?
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No direito brasileiro, uma pena tem basicamente duas funções. A primeira é punir o indivíduo que comete um crime. A segunda é evitar que esse crime seja cometido novamente. Em algumas situações, a legislação acaba priorizando a segunda função, como no caso do réu primário. Quando uma pessoa não é reincidente no âmbito criminal, a atuação do direito é muito mais contenciosa do que punitiva, visando evitar que este cidadão volte a praticar delitos.
Um belo dia você sai de casa e decide: “é hoje que eu gasto meu réu primário”. Esse instrumento jurídico se tornou quase um meme entre as pessoas, de tão conhecido e difundido que é. Mas, antes de ser preso por aí, é importante entender como esse instituto funciona e quando ele é aplicado.
Antes de mais nada, o próprio nome ‘réu primário’ leva a equívocos. ‘Primário’ não é quem comete um crime pela primeira vez, mas sim aquele que não é reincidente. Pode parecer óbvio, mas não é: para ser considerado reincidente, o indivíduo tem de ter pelo menos uma condenação penal transitada em julgado (quando não cabe mais recurso). Ou seja, se o cidadão tiver cometido vários crimes, mas em nenhum deles houve condenação definitiva, ele responderá como réu primário em todos esses processos.
Avançando, os benefícios da não-reincidência estão espalhados em dispositivos ao longo do Código Penal, mas seus artigos 43 a 48 nos dão um bom norte de como funciona a primariedade. Nestes, estão previstas as penas restritivas de direitos, que são consideradas mais brandas do que a pena privativa de liberdade (prisão). No caso do réu primário, as penas restritivas de direitos poderão substituir a pena privativa de liberdade, o que, na prática, significa que ao invés de ir para cadeia, um réu primário tenha que distribuir cestas básicas, por exemplo. Interessante, não?
É claro que há requisitos para que isso aconteça: um homicida não deixará de ir para a cadeia pelo fato de ser réu primário. Estes requisitos estão previstos no artigo 44 do Código Penal. Vejamos sua redação:
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
Do artigo 44, podemos entender o seguinte: se o cidadão for réu primário e cometeu crime culposo, é possível que haja substituição, independentemente da pena que recebeu. Agora, se o agente cometeu crime doloso, só poderá haver substituição da pena se ela não exceder os 4 anos de duração e se não houve violência ou grave ameaça no cometimento do crime. Portanto, em crimes como homicídio, roubo e estupro, está descartada qualquer substituição de pena, seja o réu primário ou não. Do contrário seria muito fácil, não é mesmo?
Passados cinco anos do cumprimento de uma condenação penal transitada em julgado, caso o sujeito não cometa nenhum crime nesse período, ele volta a ter status de réu primário, deixando claro que este termo pode ser enganoso. A substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos é o maior dos exemplos dos benefícios de ser réu primário, mas não é o único.
Como dito anteriormente, esses benefícios estão dispersos no nosso ordenamento. Em alguns trechos do Código Penal, como no artigo 149 § 2°, que trata do Tráfico de Pessoas, há uma redução expressa na pena caso o réu seja primário, assim como no § 2° do artigo 155, que dispõe sobre Furto. Mas, o dispositivo mais genérico e que irá abarcar a maior parte das pessoas certamente é o da substituição das penas.
Por fim, vale ressaltar que ser reincidente e ter antecedentes criminais são coisas diferentes. Os antecedentes surgem seja o réu primário ou não, e são um importante fator na análise do histórico do indivíduo. Neste contexto, várias empresas e órgãos públicos demandam certidão de antecedentes negativa para que determinados cargos sejam assumidos, bem como alguns países proíbem a entrada de pessoas com antecedentes criminais em seus territórios. Mas, isso é um assunto para outro momento.
Por enquanto, vamos nos limitar a entender como funciona o réu primário antes de pensarmos em gastá-lo, risos.
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