- Mariana
CNJ ouve comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão
Bandeira de Mello, Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), reuniu-se com atingidos e atingidas no Fórum de Mariana
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Na sequência da audiência pública realizada em Mariana pela Comissão Externa da Câmara de Deputados, preparatória para a repactuação relativa ao rompimento da barragem de Fundão, o Fórum de Mariana recebeu a visita de Luiz Fernando Bandeira de Melo Filho, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, para ouvir representantes das comunidades atingidas no município de Mariana (Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e zona rural), além de representantes de Gesteira e Barra Longa, contando também com a participação de moradores do distrito ouro-pretano de Antônio Pereira, sob a ameaça de um eventual rompimento da barragem de Doutor, de propriedade da Vale, e do Procurador Geral da Prefeitura de Ouro Preto, Diogo Ribeiro dos Santos.
Ainda na terça-feira (29/03), antes da audiência pública, o conselheiro do CNJ visitou alguns dos principais locais afetados pelo desastre ambiental provocado pela barragem do Fundão, como o antigo distrito de Bento Rodrigues, as obras do reassentamento onde será realocada parte dos atingidos da localidade, e instalações da Samarco, para conferir os protocolos de segurança adotados após o acidente.
Durante a audiência, Bandeira de Mello ouviu relatos de representantes das comunidades, com ênfase para as queixas relacionadas aos procedimentos adotados pela Fundação Renova, atraso nas obras e dificuldades para reconhecimento de famílias atingidas, anotando as reivindicações e apresentando aos participantes, em duas oportunidades, um resumo das questões apresentadas e que serão incluídas em seu relatório.
Ao final da audiência, falando à reportagem da Agência Primaz, o mediador ressaltou a importância da audiência no processo de repactuação e a necessidade de colocar os atingidos no centro das discussões. “Buscamos ouvir diretamente os atingidos, que são a parte mais frágil desse processo. E, sem dúvida nenhuma, o processo de repactuação deve girar em torno dos atingidos, [garantindo] a posição de centralidade dos atingidos nessa nesse processo de repactuação”, afirmou Bandeira de Mello.
Ele ainda pontuou suas impressões obtidas nas visitas e na audiência, reafirmando o compromisso de incluir as reivindicações e queixas em seu relatório e nas próximas rodadas de negociação com as empresas envolvidas (Samarco, Vale e BHP Billington). “Acredito que fico muito clara uma insatisfação das pessoas com o ritmo de reparação, mas também com uma certa falta de assessoria, ou cuidado com as condições reais das pessoas mais humildes. E isso precisa ser endereçado no âmbito da repactuação. Eu pretendo levar a essência das reivindicações que tivemos aqui hoje nessa audiência para a próxima rodada de repactuação, juntamente com as que eu ouvirei também amanhã, na continuação dessas audiências públicas, e assim tentar construir um acordo que contemple tanto quanto possível as demandas diretas das pessoas atingidas”, declarou.
Indagado pela Agência Primaz a respeito de como teria sido impactado pela visão do território atingido e pelas manifestações dos representantes da comunidade, o mediador se declarou sensibilizado pela situação, reafirmando seu comprometimento com o processo e atendimento às necessidades dos atingidos. “Eu já tinha visto a região, mas ainda sobrevoando, né? O que é diferente, evidentemente, de colocar os pés na localidade. Já tinha ouvido as pessoas na audiência pública, mas também é diferente de vê-los olho no olho. Acho que eu me sensibilizei em mais de um momento hoje, com os relatos e, particularmente, com o início, em que o os atingidos fizeram uma demonstração, até espiritual talvez, da situação em que eles se encontram e sem dúvida foi muito importante como ser humano, enxergar essa realidade. O que me faz estar comprometido com o resultado do que vai ser construído aqui”, revelou Bandeira de Mello.
Para o conselheiro do CNJ, a repactuação é uma oportunidade e um instrumento de conseguir a reparação direta dos atingidos, mas também admitiu a possibilidade de transferência de recursos aos estados e municípios, de modo a permitir o estabelecimento de políticas públicas voltadas diretamente à reparação ou compensação dos danos causados. “Eu entendo que todos os recursos obtidos com a repactuação são destinados aos atingidos. É claro que um pedaço desse recurso será entregue diretamente aos atingidos, seja na forma de transferência direta de renda, seja na forma de um fundo de autogestão dos próprios atingidos como foi feito lá em Brumadinho também, seja através de capacitação profissional, etc. Uma outra parte dos recursos será também destinados aos atingidos, porém gerenciada pelo poder público. Porque é o poder público que faz política pública. Nenhum atingido vai poder construir saneamento básico, nem vai poder fazer reflorestamento. Esse tipo de intervenção, de política pública, tem que ser feito pelo poder público. Então, uma parte do recurso será gerenciado pelo poder público, mas a destinação tem que que ser a região e as pessoas atingidas”, finalizou Bandeira de Mello.
Queixas e reivindicações
O enorme atraso na entrega dos reassentamentos de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo foi um dos pontos mais mencionados pelos participantes da audiência pública. Mas outros problemas também foram relatados ao conselheiro Bandeira de Mello, com destaque para a situação de empobrecimento e de adoecimento físico e mental dos atingidos, além da desconsideração da matriz de danos formulada por eles junto à assessoria técnica prestada pela Cáritas, a não inclusão de crianças e adolescentes nos programas de reparação de danos e o desrespeito a decisões judiciais de implantação de assessoria técnica independente em algumas localidades.
Integrante do Comitê de Atingidos de Paracatu de Baixo, Anderson Jesus de Paula falou sobre a perda de identidade dos atingidos e sobre a forma como são discriminados. “Nós abrimos mão da nossa vida pessoal, [nós] desgastamos muito. O Mauro, na última audiência, ele falou uma coisa, e o que ele falou reflete todos os atingidos, principalmente de Mariana. Nós deixamos de ter a nossa identidade, mas somos chamados de ‘Anderson atingido’, ‘Anderson de Paracatu’, ‘Anderson da lama’. Não que ser chamado ‘Mauro do Bento’ é pejorativo, não é. Mas ele deixou de ser Mauro. Eu deixei de ser Anderson Jesus de Paula. São os efeitos colaterais da tragédia continuada, do crime continuado. Nós não temos mais nossa identidade”, afirmou, ressaltando que os atingidos são vistos como beneficiados pelo rompimento da barragem, como futuros donos de mansões, enquanto as empresas, responsáveis pela destruição de vidas, é quem determina o valor dessas vidas e das reparações. “A última propaganda que eu vi, com quase 80% de infraestrutura do Paracatu concluída, foi gasto R$800 milhões. Aí as pessoas viram e falam assim, sabe o que que a gente escuta? Eu acho que muita gente já escutou que nós vamos morar no Alphaville Pobre. É o Alphaville de pobre, não é? Aí a gente escuta isso. ‘E a sua mansão?’. A gente escuta muito isso. ‘Se na minha casa tivesse passado lama. Ah se eu fosse atingido’. Porque confunde padrão construtivo com direito da restituição. Aí eu pergunto, ‘tão’ dialogando, ‘tão’ fazendo essa proposta de repactuação? Mas, e a punição por não cumprir? No meu entendimento, se não tiver nenhum critério de punição por não ter feito, [repactuar] é anistiar. Nós estamos anistiando o não ter feito até agora”.
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Residente na chamada “Vila Samarco”, localizada no distrito de Antônio Pereira, Maria Helena Rocha Ferreira lembra que a vila foi construída para os engenheiros da Vale e que, portanto, fica acima da barragem que rompeu. “Peço licença a vocês, atingidos de Mariana, ‘pra’ trazer ‘pra’ vocês um pouquinho da história do distrito de Antônio Pereira, que é onde eu moro. A minha casa fica a dez minutos da barragem de Fundão, que rompeu. Felizmente, nós não tivemos o derramamento da lama, lá no nosso território, porque nosso território fica um pouquinho mais alto, é o que se chama Vila Samarco. Acreditamos que a empresa não ia construir uma vila ‘pra’ engenheiros abaixo do nível da barragem. A gente acredita que a nossa vila, o nosso distrito, está construído acima exatamente já pensando nisso”.
Maria Helena chama a atenção para o fato que, devido à proximidade com a área de mineração, o distrito sofre as consequências da presença de um grande volume de trabalhadores alojados no local. “Ouvindo todos os relatos dos senhores, eu fico observando que os relatos dos atingidos é o mesmo. De norte a sul, de leste a oeste, são sempre as mesmas queixas. O território do [Antônio] Pereira é duplamente atingido pela lama invisível. O rompimento aconteceu em 2015, e o território é muito próximo da mineração, é a comunidade mais próxima depois dos portões da mineração. Então, é lá que realmente se alojam os funcionários de baixa renda, que a mineração traz ‘pra’ servir a ela, nas empreiteiras, nas terceirizadas. Com isso, grande é o número de problemas sociais que a empresa traz ‘pra’ nós, com todo esse volume de pessoas. Em 2018, se eu não me engano, 2019, nós tínhamos quase dois mil homens alojados dentro do distrito de Antônio Pereira. Então, o senhor imagina o transtorno que todo esse volume de pessoas traz ‘pra’ nós. Falta água, falta tudo, né? O serviço público, que já não é bom, fica aquele caos”, afirma Maria Helena.
Mas, também em decorrência do descomissionamento da barragem de Doutor, construída pela Vale, o distrito e a vila são ameaçados pela lama invisível, que provoca uma série de outros problemas e preocupações, tornando imperioso o reconhecimento da condição de atingidos. “Quando rompeu a barragem, nós sabíamos do problema, mas nós não sabíamos dar nome ‘pro’ problema. Hoje, quando nós estamos sofrendo de novo com a lama invisível da barragem Doutor, que está em nível 1, hoje a gente consegue dar nome e [pode] dizer que nós estamos sofrendo pela lama invisível. E conseguimos sentir que é a mesma lama invisível, o mesmo problema que nós sentimos referente à barragem de Fundão. Então, eu quero trazer ‘pro’ senhor essa realidade, porque é necessário a gente ter leis que nos garantam os direitos aos atingidos daqueles que sofrem pela lama invisível. Porque a lama invisível também mata”, enfatizou.
Audiência Judicial e documento da Cáritas
Guilherme Meneghin, Promotor de Justiça de Mariana, noticiou a realização de uma audiência judicial, na manhã do próprio dia da audiência pública, classificando como “palhaçada” a posição tomada pelas empresas envolvidas, que recusaram a continuidade do trabalho da assessoria prestada aos atingidos pela Cáritas, afirmando que a questão precisará ser judicializada em mais um procedimento legal.
Ainda durante a audiência pública, o mediador Bandeira de Mello recebeu o documento “Considerações para a continuidade da reparação em Mariana”, elaborado pela Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e pela Regional Minas Gerais da Cáritas Brasileira, que reúne “informações a serem consideradas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelas instituições de justiça (Ministério Público Federal, Ministério Público de Minas Gerais, Ministério Público do Espírito Santo e Defensorias Públicas), pela Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais e também do Espírito Santo e pela Advocacia Geral da União no chamado processo de repactuação do Caso Samarco-Rio Doce”.