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Hoje é segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Como funciona o Tribunal Internacional de Haia?

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Com a ascensão dos conflitos entre Rússia e Ucrânia e a troca de acusações sobre crimes de guerra de ambos os lados, muito tem se falado na imprensa sobre o Tribunal Penal Internacional de Haia. Apesar de pouco conhecido, ele tem aparições recorrentes na mídia, sempre atrelado a casos de grande repercussão. Houve até quem propusesse que o atual presidente do Brasil fosse processado por lá, em uma questão política que essa coluna não vai adentrar. Mas, como funciona esse tribunal? Quais casos ele pode julgar?

Em primeiro lugar, cabe destacar que são os dois os chamados ‘tribunais de Haia’. O Tribunal Penal Internacional (TPI), e a Corte Internacional de Justiça (CIJ). A diferença entre eles é bem simples: o TPI julga pessoas, enquanto a Corte Internacional de Justiça julga Estados. Além disso, o tribunal penal, como seu próprio nome sugere, tratará apenas de crimes, enquanto a CIJ vai resolver litígios de variados campos do Direito. Como a Corte Internacional de Justiça merece um artigo próprio, vamos nos limitar a tratar do TPI.

O Tribunal Penal Internacional foi constituído no de ano de 2002, em Haia, uma simpática cidade holandesa. A finalidade do TPI é julgar e condenar indivíduos que praticaram crimes contra os direitos humanos. Ou seja, seu objeto de análise é bem restrito: crimes de genocídio, de guerra e crimes contra a humanidade. Tudo o que for fora disso não poderá ser objeto de discussão no tribunal, ficando a cargo dos próprios países julgarem os indivíduos (seja o país de origem do cidadão ou o país em que o crime foi cometido, a depender das práticas de Direito Internacional adotadas pelas nações envolvidas).

Pois bem, o Tribunal Penal Internacional foi criado a partir do Estatuto de Roma, um tratado que conta com a anuência de 122 países-membros. Para se tornar um país-membro, o Chefe do Executivo da nação (no Brasil, o Presidente) deve assinar o acordo, que deve ser ratificado pelo seu poder legislativo (no Brasil, o Congresso). Só então, o tratado passa a valer. Isso significa que, na prática, esse estatuto foi aprovado por todos esses países, que ficaram de acordo com as regras que disciplinam o funcionamento deste tribunal, o que sujeita seus cidadãos e aqueles que estejam em seu território ao Estatuto.

O Brasil é um país-membro do Estatuto de Roma, assim como grande parte da Europa, da África, Oceania e a América do Sul quase em sua totalidade. Contudo, um país não é obrigado a assinar e ratificar nenhum tratado, seja ele qual for. Então, é perfeitamente possível que uma nação esteja sujeita às regras da ONU, mas esteja alheia às regras de seu principal órgão penal, o TPI. E aqui está o problema.

Para que um indivíduo seja julgado pelo TPI, ele deve, antes de tudo, ser detido e levado a julgamento. Ou, caso seja possível julgá-lo em liberdade, se condenado, deve ser preso para que cumpra a pena. Neste sentido, países relevantes no cenário internacional não são Estados-membros do Estatuto de Roma, o que os desobriga a cooperar de qualquer forma com o TPI, colocando em xeque a efetividade dessa estrutura jurídica.

Vejamos o caso da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Nenhum dos dois países é membro do Estatuto de Roma. Peça-chave desse conflito, os Estados Unidos não também não fazem parte da lista de membros. Assim, por mais que haja esforço por parte do TPI para investigar e processar os culpados por eventuais crimes de guerra, é difícil imaginar que isso aconteça, pelo menos em um futuro próximo.

Neste contexto, certamente o presidente russo Vladimir Putin, ao invadir a Ucrânia, já esperava uma forte reação internacional. Caso ele seja responsabilizado pelos supostos crimes de guerra, para que ele fosse levado a julgamento, deveria ser extraditado para o TPI por algum de seus Estados-membros ou então pela própria Rússia, se ela aderir ao Estatuto, após uma eventual queda de Putin. Cenário bastante improvável, razão pela qual o TPI não deve deter Putin, segundo o professor Gunther Rudzit. Ponto negativo para Haia.

Os problemas do TPI, contudo, não significam que ele não teve impactos importantes no contexto jurídico mundial. O primeiro deles é a tentativa de evitar a criação de tribunais de exceção, como o de Nuremberg e o de Tóquio após a 2a Guerra Mundial, onde somente os países vencedores do confronto participaram do julgamento. Com uma presença maciça de países neutros, a ideia é de que as sessões sejam mais precisas e imparciais, prezando-se pela Justiça e não por vingança.

Além disso, o TPI já efetuou condenações importantes desde que foi criado. O general Thomas Lubanga, líder de um exército rebelde no Congo, foi condenado pelo tribunal a 14 anos de prisão, por, dentre outras coisas, recrutar crianças para a luta armada em seu país. Na Europa, o ex-comandante do exército Sérvio, Ratko Mladic, foi condenado à prisão perpétua por crimes de guerra cometidos na década de 1990. Dessa forma, o tribunal vem consolidando sua atuação.

Ainda que esteja muito distante de seu funcionamento ideal, de punir todos aqueles que praticarem crimes contra os direitos humanos, o TPI já trouxe resultados consistentes, e certamente é um instituto jurídico sólido e importante.

Vítor Morato
Vitor Morato é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e pós-graduando em Direito Público. Instagram: @vitormorato.
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