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Hoje é quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Atingidos de Antônio Pereira se revoltam com o impedimento de se manifestarem, após processo da Vale

Moradores do distrito de Ouro Preto recorrem à Justiça e pedem o direito de livre manifestação

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Imagem do dia 2 de fevereiro, quando atingidos de Antônio Pereiro foram até o TJMG pedir voz à comunidade - Foto: MAB
Em reunião do Comitê Municipal de Direitos Humanos de Ouro Preto, a Câmara Municipal recebeu, na terça-feira (3), os atingidos pela barragem de Doutor, da Vale, no distrito de Antônio Pereira. Além de demonstrarem indignação perante os danos causados pelo risco de rompimento e pela descaracterização da estrutura, eles também procuraram os membros do poder Legislativo Municipal para tratar sobre um processo que a mineradora move contra a comunidade.

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Ainda em fevereiro de 2020, as primeiras famílias de Antônio Pereira foram retiradas de suas casas para iniciar o plano de descaracterização da barragem de Doutor. Em abril do mesmo ano, a Vale elevou o nível de emergência da estrutura para nível 2 da escala de rompimento. Desde então, a comunidade busca a reparação dos danos causados pelas ações da mineradora no distrito. Em maio de 2021, a barragem voltou ao nível 1 de emergência. Cerca de 144 famílias foram removidas de suas casas. Algumas puderam retornar ao lar após a estabilização do nível de emergência da barragem, mas outros permanecem em hotéis e casas alugadas pela Vale.

Moradoras de Antônio Pereira que permaneceram em suas casas contam a dificuldade em conviver com as obras na barragem e o medo constante de acontecer um rompimento na estrutura. “É difícil encontrar uma família de Antônio Pereira que não tenha uma pessoa com doença, com depressão, com dermatite no corpo. É particulado de minério por toda a nossa casa. Eu passo todos os dias nas ZAS [Zona de Auto Salvamento]. Eu tenho seis segundos para correr se a barragem romper. Eu já contei, se eu tenho um caminhão ou uma carreta na minha frente, eu demoro 40 segundos para fazer o trajeto na MG-129”, contou Maria Helena, moradora do distrito.

Ivone Pereira Zacarias também é moradora do distrito de Antônio Pereira e relatou as dificuldades que tem para deixar sua casa limpa devido à poeira que chega da barragem. “Eu limpo a casa e não vejo nada limpo, coloco a roupa para lavar e não sei se volto com ela na máquina. Eu nunca tive problema de vista e agora estou tendo. Eu era uma mulher sadia e hoje eu não sou mais”, disse.

Maria Helena contou que a comunidade já apresentou algumas propostas para a mineradora para mitigar os problemas de saúde que a população de Antônio Pereira tem sofrido, mas, segundo ela, não houve resposta. “Ela aprovou um programa emergencial com um psiquiatra para uma comunidade de 6 mil habitantes. A mineração é importante para a geração de emprego, mas ela não pode nos impedir de viver”, contou.

Ação judicial da Vale

Os atingidos de Antônio Pereira realizam uma paralisação na MG-129, no trevo de acesso a Bento Rodrigues, distrito de Mariana, no dia 1º de dezembro de 2021, exigindo contrapartidas, contratação de assessoria técnica independente, novas remoções e investimento na saúde da população.

A partir disso, a Vale entrou com uma ação judicial contra a comunidade, para que se abstenham de bloquear os acessos às suas dependências, sobretudo à Mina Timbopeba, sendo determinado, ainda, a imediata desocupação em caso de interdição, expedindo-se ofício à Polícia Militar para que cumpra a ordem a qualquer tempo. A Vale pediu, ainda, que a medida seja deferida para eventos futuros na localidade, diante das informações de serem recorrentes as manifestações, o que acarreta o impedimento do direito de ir e vir dos funcionários da empresa autora.

Por fim, ela pede que seja determinado aos manifestantes que, ao realizarem manifestações, o façam por meio de disponibilização de informações prévias e com o devido requerimento aos órgãos competentes.

A Juíza Kellen Cristini de Sales e Souza, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ouro Preto, indeferiu o pedido de tutela de urgência da Vale, considerando que não se pode restringir o direito de liberdade de reunião e manifestação, constitucionalmente garantido no artigo 5º, CVI, da Constituição Federal que diz: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”, manifestou a juíza.

Em sua decisão, a juíza reconhece a legitimidade das medidas adotadas pela Vale com o objetivo de regular a atividade de descomissionamento da barragem de Doutor. Ela afirma, porém, que “não se pode deferir autorização judicial, como se pretende, a fim de reprimir e/ou obstaculizar o exercício do direito de manifestação pelas pessoas atingidas por tais medidas”.

Reprodução de parte da decisão Juíza Kellen Cristini, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ouro Preto

No entanto, a Vale recorreu à ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que deferiu o pedido de antecipação da Tutela Recursal a fim de que os réus (atingidos de Antônio Pereira) não façam novas manifestações nos locais que dão acesso direto à entrada da Mina Timbopeba, na Rodovia MG 129, Km 125,9, no trevo do distrito de Bento Rodrigues e proximidades da Mina, “frustrando a atividade ali exercida e o projeto de descomissionamento”.

Imagem da decisão do TJMG

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A ação judicial da Vale causou ainda mais revolta nos moradores de Antônio Pereira, que afirmam que, além da retirada do bem-estar em se viver no distrito, a mineradora também quer tirar o direito da comunidade se manifestar. “Além dela alfinetar a gente e nos ‘ferrar’, não temos o direito de gritar nem um ‘ai’. Nem um socorro, até isso ela quer nos tirar. Ela mostra para as pessoas que está tudo muito bem, mas não está. A Vale está mentindo nessa comunicação que ela diz ter com a comunidade. Não somos reparados, não temos voz lá dentro, não temos o direito de gritar nada. As nossas casas, nossas ruas e a nossa privacidade está toda detonada, lá virou um canteiro de obras. É barulho durante o dia, poeira, trânsito, alojamentos e, Antônio Pereira não é mais o mesmo”, contou Carla Daiana.

De forma majoritária, eram mulheres as manifestantes no ato realizado na MG-129, em dezembro do ano passado, representando o total da representação da comunidade na Câmara de Ouro Preto, na terça-feira. “Os nossos maridos já não fazem manifestação, porque nenhum empregado da mineração tem o direito legítimo de se manifestar. Então, nós, mulheres, somos obrigadas a largar os nossos afazeres em casa para sair para buscar o direito da família”, explicou Maria Helena.

Apesar da ação judicial da Vale, muitas que estavam na Câmara de Ouro Preto não demonstraram desistência em realizar manifestações para serem ouvidas. “Estou indignada dela [Vale] ter entrado com o processo contra a comunidade de Antônio Pereira, porque quem tem que entrar com processo contra ela somos nós. Estão tirando o nosso direito de viver, nossas nascentes, cachoeiras, não temos lazer. Eu não me sinto segura mais em Antônio Pereira e eu não vou parar, não adianta me mandar processo achando que eu vou abaixar minha cabeça. Eu vou lutar até o meu último suspiro, não paro”, disse Ivone Zacarias.

Bruno Coutinho de Oliveira é advogado de muitos dos atingidos de Antônio Pereira. Ele contou à Agência Primaz que vai recorrer da decisão do TJMG. Para ele, a ação judicial da Vale tem o objetivo de cercear o direito da comunidade se manifestar e de causar medo aos moradores. “Esse processo, no meu entendimento, é um absurdo, é uma aberração jurídica e viola um direito constitucional de manifestação de pensamento. O pior desse processo não é só a violação ao direito de manifestação, é o que ele representa, porque através dessa ação a Vale insiste em lançar o medo, a ameaça e o terror sobre a população para que eles não se manifestem e se calem. A manifestação dos moradores de Antônio Pereira é perfeitamente legítima”, pontuou.

Representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Lucas de Assis, esteve na reunião do Comitê Municipal de Direitos Humanos de Ouro Preto e considerou a fundamentação técnica da decisão do TJMG “rasa” e que merecia ser revista. “Eu entendo que, quando acontece coisas do tipo, sabemos o que existe por trás. Enquanto OAB de Ouro Preto, eu considero que esse caso de extrema relevância e me comprometo a encaminhar um contato direto com a Comissão Estadual de Direitos Humanos da OAB para que ela tome ciência disso e possa acompanhar de perto o caso que, para mim, é uma violação constitucional gritante de direito de manifestação e liberdade de expressão, é uma salvaguarda como cidadão”, pronunciou.

Segundo Lina Lages, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Vale fez o mesmo tipo de ação em outros municípios, como Barão de Cocais e cidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, bem como com outros atingidos que também participam do MAB. “Eu acredito que se a Vale sofrer algum tipo de reação, isso pode reverberar em outros territórios atingidos. A Vale coloca que os moradores não podem paralisar o trabalho da Vale, enquanto ela faz a mesma coisa com os moradores de Antônio Pereira quando retiram o território do garimpo, que é uma função histórica dos moradores locais. A área que tinha a maior quantidade de ouro foi retirada para fazer o vertedouro da barragem, a outra não se pode garimpar para não causar algum risco e nada foi feito para colocar renda para essas famílias”, declarou.

Ausência de Assessoria Técnica

Em audiência realizada em setembro de 2021, a Juíza Kellen Cristini afirmou que é indiscutível o direito dos atingidos em Antônio Pereira à Assessoria Técnica Independente (ATI) durante o processo de reparação dos danos causados pela Vale no distrito, mas a mineradora recorreu da decisão e ainda não há uma definição sobre a garantia da ATI para a comunidade.

O Instituto Guaicuy foi eleito, em fevereiro de 2021, com 67,34% dos votos da comunidade, como entidade responsável pela ATI para os atingidos de Antônio Pereira. O resultado foi homologado pela Justiça no mês seguinte e, em maio, apresentou a primeira versão do plano de trabalho, construído junto com a população local. O Ministério Público aprovou o documento, que foi apresentado à juíza.

De junho em diante, o percurso processual vem prolongando a espera e aumentando a aflição dos atingidos, que exigem a presença da ATI para que possam ter acesso a informações técnicas confiáveis e independentes para dimensionar perdas, materiais e intangíveis, provocadas pela ação da mineradora. “Estamos atuando para vários moradores de Antônio Pereira em ações individuais, visando a reparação de todos os danos causados com a barragem de Doutor. São ações demoradas e estão em curso. Temos tido resultados muito interessantes no primeiro andamento do processo aqui na Vara Cível, mas estão ainda engatinhando, tem muito a acontecer”, disse Bruno Coutinho à Agência Primaz.

Na próxima terça-feira (10), às 16h, a Câmara Itinerante estará em Antônio Pereira. Estando aberta a possibilidade da realização de uma audiência pública, inclusive com o encaminhamento de convite à Vale.

Reunião do Comitê Municipal de Direitos Humanos de Ouro Preto ocorrida na terça-feira (3) - Foto: Rômulo Soares/Agência Primaz

O que diz a Vale

Em resposta a questionamento feito pela Agência Primaz, a Vale informou apenas que “respeita a livre manifestação, desde que observado o direito de ir e vir e a propriedade privada. A empresa não tem medido esforços para garantir que as pessoas impactadas pelas evacuações em Antônio Pereira sejam integralmente reparadas, de forma justa e célere”. Segundo a mineradora, em março deste ano começaram as atividades preparatórias para as obras de descaracterização da barragem de Doutor, em Antônio Pereira, cujos trabalhos, que serão executados até setembro deste ano, incluem a instalação de instrumentos na área da barragem, construção de aterro e do canteiro de obras definitivo, além de atividades para manutenção dos acessos.

Ainda segundo a Vale, a previsão é de que aproximadamente 100 profissionais atuem nesta fase, sendo priorizada a contratação de mão de obra local, com mobilização a cargo do Sistema Nacional de Emprego (Sine).

Doutor é uma das 30 estruturas mapeadas no Programa de Descaracterização da Vale, e a previsão atual é de que a estrutura esteja completamente descaracterizada até 2029. “As ações preventivas, corretivas e de monitoramento da barragem têm sido intensificadas, permitindo o aumento da segurança até que as etapas preparatórias e de engenharia para a descaracterização sejam concluídas”, disse a mineradora, em nota, informando que segue em desenvolvimento o projeto para reparo do vertedouro, sendo atualmente realizadas ações de sondagens e testes de solo.

Ausência do vereador local

Momentos antes da reunião do Comitê Municipal de Direitos Humanos de Ouro Preto começar, o vereador Vander Leitoa (Solidariedade) foi avistado em frente à Câmara Municipal, mas não participou da reunião, o que gerou críticas de algumas moradoras de Antônio Pereira, por se tratar de um membro do poder Legislativo nascido e criado no distrito, eleito com uma grande quantidade de votos da comunidade.

À Agência Primaz, Vander Leitoa esclareceu que não participou da reunião por ter tido um compromisso já marcado, afirmando que sua relação com os atingidos de Antônio Pereira é “muito tranquila”. “Eu tinha uma agenda de hoje já marcada com a secretária de Patrimônio, Margareth, estive com ela reunido, para tratar sobre os 300 anos da Festa de Nossa Senhora da Lapa, a primeira romaria do Brasil. Mas o pessoal foi bem representado, acompanho a luta dos atingidos”, disse.

Sobre a situação dos atingidos em relação à mineradora, Vander disse que também já foi perseguido pela Vale. “A Vale tem muito isso de perseguir as pessoas que se manifestam em busca de seus direitos. A sirene de lá está mais para ‘trombeta do fim dos tempos’, porque se ela tocar, Antônio Pereira é destruído pela barragem. É preocupante, todo mundo fica com a cabeça cheia”, finalizou.

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