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Hoje é quinta-feira, 19 de setembro de 2024

As diferenças entre traficante e usuário são menores do que você imagina…

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

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O consumo de drogas é, há décadas, objeto de estudo em todo o mundo. Neste sentido, além de pesquisas no campo da Medicina para análise dos efeitos dos entorpecentes no corpo humano, há uma grande abordagem sociológica para entender o que leva as pessoas a consumirem drogas socialmente ou diariamente. Como forma de combater o uso de ilícitos, o Estado adota medidas pesadas contra os traficantes. Mas, você sabe mesmo diferenciá-los dos usuários? Há uma quantidade de drogas que você pode portar para que não seja enquadrado como traficante?

Em primeiro lugar, vamos entender o que é ‘droga’ do ponto de vista jurídico. A lei que dispõe sobre os entorpecentes é a Lei 11.343, que vigora desde 2006. Antes, tínhamos a antiga Lei dos Tóxicos, de 1976. Aqui, vale uma consideração: como o legislativo brasileiro é lento muitas vezes! Demorou 30 anos para que fosse feita uma legislação atualizada, e mais adequada à realidade atual. Nosso Código de Processo Penal ainda é da década de 40! Neste sentido, parece óbvio dizer que o tráfico evoluiu muito mais rápido do que o Estado em vários aspectos.

Pois bem, a lei 11.343 não define quais são as ‘drogas’ proibidas e as permitidas para consumo, mas aponta onde devemos buscar esse conceito. Vejamos o parágrafo único do artigo 1° deste texto legislativo.

Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

O que o dispositivo diz, em outras palavras, é que um órgão especializado do governo vai definir quais drogas são lícitas e quais são ilícitas. Este órgão, atualmente, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). E, essa determinação faz todo sentido, uma vez que uma agência de saúde é muito mais adequada para isso do que o Congresso Nacional. Além disso, as coisas ficam muito mais dinâmicas: se através de novos estudos, a ANVISA concluir que determinada substância não traz grandes consequências à saúde, pode movê-la para a lista das drogas lícitas, sem que isso tenha que passar pelo Congresso Nacional. E, o oposto também se aplica: se a ANVISA concluir que determinada substância atualmente lícita causa dependência e é danosa à saúde, a agência pode proibi-la.

Em suma: droga ilícita é tudo aquilo que a ANVISA diz que é. As mais comuns são as que todos conhecem: maconha, cocaína, ecstasy, LSD, crack e por aí vai. Dificilmente alguém é surpreendido portando uma substância que não sabia ser proibida. A exceção são alguns medicamentos, que vez ou outra flutuam entre a legalidade e ilicitude, a depender do entendimento da agência com base em estudos recentes. A lista completa das drogas proibidas no Brasil pode ser acessada aqui.

Mas, e aí, estou portando uma quantidade X de uma droga ilícita. Se eu for detido, serei enquadrado como usuário ou traficante?

Aqui, temos um problema enorme. Os dispositivos que tratam de ‘usuário’ e ‘traficante’ na legislação são respectivamente os artigos 28 e 33 da Lei 11.343, que mencionamos acima. Vejamos o que eles dizem.

Art. 28 Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas (…)

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (…)

As redações são muito parecidas. Por exemplo, ambos os artigos tratam da possibilidade de ‘guardar’, ter drogas ‘em depósito’, ‘transportar’ ou ‘trazer consigo’. Não existe uma quantidade determinada de drogas, nem nada que especifique quem é usuário e quem é traficante. Isso ficará a cargo da interpretação do delegado e do juiz, a depender das circunstâncias da prisão.

Ou seja, se a pessoa foi encontrada com pequenos pacotes de droga embalados, em uma ‘boca de fumo’ e com muitas cédulas de dinheiro no bolso, tende a ser considerada traficante. Se foi detida com a mesma quantidade na calçada de sua casa, mas sem a droga estar separada em pequenos pacotes, em uma rua que habitualmente não tem ligação com o tráfico, provavelmente será considerada usuária. 

Isso pode até parecer bom em um primeiro momento, mas é péssimo. A história todos nós já conhecemos: a partir de uma mesma quantidade de entorpecentes, o pobre da favela será autuado como traficante e o rico do condomínio como usuário. Enquanto a pena ao usuário se limita à prestação de serviços comunitários e a assistir cursos educativos, um traficante pode mofar quinze anos na cadeia. Ainda mais sem uma assistência jurídica adequada.  

Então, cuidado, risos. Não se trata da quantidade de drogas apreendida, e sim quais as condições e o cenário em que ela foi encontrada. Um usuário pode perfeitamente ser autuado como traficante. É claro que se houver uma apreensão de grande quantidade, como dezenas ou centenas de quilogramas, não há conversa. Ninguém pode dizer que tem 100 kg de maconha em casa somente para seu consumo. Poder dizer, até pode. Só que juridicamente isso não se sustenta.

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Vitor Morato é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e pós-graduando em Direito Público. Instagram: @vitormorato.
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