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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Única atração do Festival de Inverno – Encontros, em Mariana, seminário voltado à capoeira trouxe apelos por valorização financeira

Mestres capoeiristas de Ouro Preto e Mariana se reuniram com representantes do Iphan e demonstraram descontentamento com reconhecimento apenas simbólico

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Mestres Paulo Brasa, Francisco (Batata) e Damião durante o Seminário - Foto: Pedro Olavo/Agência Primaz
Aconteceu, dia 6 de julho, no auditório G20 do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), um dos campi da Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana, o seminário “Saberes em Roda: Conversas sobre Patrimônio Imaterial”. O evento foi a única atração realizada na cidade de Mariana, dentre a vasta programação do Festival de Inverno – Encontros. O evento reuniu representantes do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e representantes da capoeiragem de Ouro Preto e Mariana, entre mestres, professores e praticantes, em três momentos, quando foram discutidas questões relacionadas ao reconhecimento e à salvaguarda da capoeira como patrimônio imaterial reconhecido pela autarquia, além de serem expressadas as expectativas e frustrações quanto a falta de retorno financeiros e situações pelas quais mestres e professores passam.

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Programado para ser realizada ao longo de toda a tarde de quarta-feira (06), o primeiro momento do seminário foi uma roda de conversa, onde mestres e outros representantes de grupos de capoeira das duas cidades mineiras compartilharam suas memórias com essa expressão cultural.

Em seguida, a oficina “Salvaguarda da Roda de Capoeira e do Ofício de Mestre de Capoeira em Minas Gerais” contou com a participação de Priscila Paiva, do Coletivo da Salvaguarda da Capoeira em Minas Gerais, e das técnicas de Patrimônio Imaterial do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Minas Gerais, Tainah Leite e Vanilza Jacundino. Neste momento, discussões que já haviam sido iniciadas na roda de conversa “Memórias e Histórias de Capoeiras em Mariana” foram retomadas e ampliadas, sendo discutidas as etapas burocráticas que permeiam a salvaguarda de um patrimônio imaterial, alternativas para a atuação do Iphan em prol dos mestres e professores dessa expressão cultural, além da importância de se estabelecer políticas públicas voltadas à sua área de atuação. Por fim, o encerramento contou com uma roda de capoeira dentro do próprio auditório.

Oficinas do Iphan

Segundo Tainah Leite, que trabalha na superintendência do Iphan em Belo Horizonte, já existia o projeto de realizar oficinas ao longo do ano, dentro do contexto do processo de salvaguarda da roda de capoeira e do ofício de mestre nas cidades onde o Iphan possui escritórios técnicos (Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, Tiradentes, Congonhas, Serro e Diamantina). Ainda segundo ela, o convite para que houvesse a integralização entre essa ação e a programação do Festival de Inverno ocorreu já próximo à data de realização do evento, com tempo reduzido pouco tempo para a organização do seminário. Apesar disso, a proposta foi bem recebida, uma vez que o Instituto já possui uma longa relação com o festival e a universidade. Ainda segundo ela, há uma diferença entre o tratamento dedicado ao patrimônio imaterial e o voltado ao patrimônio material, devido à própria trajetória de atuação do Iphan. “A política de patrimônio imaterial vem justamente com essa marca da diversidade. O Iphan atua muito diretamente com essas práticas e culturas populares de diversas tradições”, pontuou Tainah Leite, complementando que a realização das oficinas tem o objetivo de servir como uma aproximação entre o Instituto e os cidadãos das cidades onde há escritórios técnicos.

Ao explicar sobre como funciona o mapeamento de expressões culturais, Tainah ressalta que este é sempre um “trabalho por fazer”, devido à sua natureza dinâmica.  Segundo ela, há um mapeamento oficial feito em 2014 sobre a capoeira, mas que precisa ser constantemente atualizado a partir do contato com grupos locais. Para o seminário, foram convidados os mestres capoeiristas Paulo Brasa, Francisco (Batata), Damião, Gleison (Skin), Alfredo (Alicate), Sebastião (Tuca) e Adilson (Borracha), que ocuparam lugar de destaque na roda formada.

Reconhecimento financeiro

Considerado uma figura de grande importância para a capoeira em Ouro Preto, Mestre Brasa deu início à roda de conversa com uma fala que, além de mencionar sua trajetória com a capoeira, com início na década de 1970, passou pelo momento em que a prática esportiva e cultural ainda era marcada pela criminalização. Bem-humorado, ele não deixou de expressar seu descontentamento diante da percepção que, ainda que os anos tenham se passado, com o empenho de muitas pessoas com a prática e o ensino da capoeira, mantêm-se uma “estética da precariedade”, persistindo dificuldades de cunho material para aqueles que se dedicam à perpetuação da prática. Ele finalizou a fala contando como, em 2010, foi concedido pelo Iphan um prêmio de R $15 mil reais a mestres contemplados, como parte das ações de reconhecimento da capoeira como patrimônio cultural imaterial. Por não ter participado da movimentação na época, não pôde receber o dinheiro, ainda que posteriormente tivesse sido informado que poderia receber a quantia, mas reclama de nunca ter conseguido informações claras quanto ao recebimento desse incentivo. Essa manifestação de Brasa puxou uma série de falas de outros Mestres, nas quais a ausência de reconhecimento financeiro mostrou-se um incômodo generalizado e uma demanda pulsante.

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Mestre Skin fez críticas à falta de atenção dada aos mestres, dando o exemplo do próprio Mestre Brasa, que estava vivendo em situação de rua há pouco tempo, e teve seu retorno à capoeira após um esforço coletivo para localizá-lo e garantir recursos. “É muito fácil você falar que fui aluno do mestre, que fez parte da escola do mestre, mas você sabe como o mestre ‘tá’ vivendo, se o mestre ‘tá’ almoçando? Será que tem essa preocupação? É essa a preocupação que nós devemos ter com o capoeirista”, afirmou Mestre Skin, acrescentando que a visibilidade não permite dar continuidade ao trabalho realizado por ele e seus colegas. “Eu já recebi várias honrarias, medalhas pelo trabalho que a gente faz. Mas com essas honrarias eu não consigo colocar um uniforme em uma criança, comprar um berimbau numa loja […] É isso que entristece”.

A presença do Iphan foi também determinante para o tom adotado pelos convidados, que se dirigiram diretamente às representantes para expor suas expectativas de parceria, de modo que sejam encontradas formas para que o reconhecimento possa ultrapassar o campo do simbólico. “Que o Iphan possa passar de frente com a gente nisso e possa nos dar o apoio que a gente precisa. A capoeira não precisa de uniforme, ela precisa se fortalecer. [É preciso] fortalecer os capoeiristas. A gente tem o conhecimento, nós nos valorizamos como capoeiristas, mas as pessoas não valorizam”, afirmou Mestre Damião.

À esquerda, Vanilza Jacundino e Tainah Leite, técnicas de Patrimônio Imaterial do Iphan e Priscila Paiva, do Coletivo da Salvaguarda da Capoeira em Minas Gerais, junto às representações da capoeiragem em Mariana e Ouro Preto, contando com mestres, professores e alunos - Foto: Pedro Olavo/Agência Primaz

Pensando estratégias

Durante a oficina sobre a salvaguarda – um conjunto de medidas que garantem a integridade e preservação de algo -, foi a vez das representantes do Iphan explicarem sobre a necessidade de se estabelecer políticas de fomento para a capoeira, algo que muitas vezes parte das próprias prefeituras. Priscila Paiva lembrou que, após 10 anos de atuação com o Coletivo Salvaguarda da Capoeira em Minas Gerais, não houve recursos diretos, mas sim melhorias em políticas públicas, como editais de cultura, especialmente aqueles voltados a grupos de capoeira e a mestres da cultura popular, ressaltando que o Iphan não possui a capacidade de intervir em mecanismos que repassam recursos públicos.

Perpassada por muitos níveis de complexidade, as estratégias possíveis para acesso a recursos, como aquelas via editais de fomento à cultura, apresentam desafios àqueles a quem se destinam. Durante a conversa, foi perceptível que havia um desconforto em relação à distância que os Mestres se encontram dos mecanismos legais, e sua necessidade em aprender a acessar e participar de discussões de ordem política, para além de sua dedicação à prática e ensino da capoeira. Vanilza Jacundino destacou a importância do registro de patrimônio imaterial, dentro da lei de registro vigente nas cidades, para que possam ser criadas políticas públicas, algo que atos meramente simbólicos, como a comemoração do Dia do Capoeirista, em 3 de agosto. O impacto de um registro, a partir da mobilização dos Mestres, com um abaixo assinado, foi reforçado com a observação que, com o reconhecimento municipal, seria necessária a realização de um inventário do patrimônio imaterial, com mapeamento e recuperação histórica.

A gente precisa se dedicar um pouco mais a isso, pelo menos por um período, para a gente aprender a dominar [os mecanismos de salvaguarda]”, concluiu o Mestre Paulo Brasa, indicando o começo de uma mobilização em busca de melhores condições para que os capoeiristas possam abandonar a “estética da precariedade” e receber a valorização enquanto uma forma de cultura viva.

O seminário não poderia terminar de outra forma que não em uma grande roda de capoeira, celebrando a expressão cultural que faz parte das cidades de Mariana e Ouro Preto tanto quanto o conhecido patrimônio material colonial.

Confira na galeria, em fotos de Pedro Olavo:

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