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Hoje é sábado, 23 de novembro de 2024

Nova lei de cotas busca garantir acesso de pessoas trans ao mercado de trabalho em Mariana

Projeto de autoria do vereador Ediraldo Ramos busca garantir equidade de oportunidades para população de transsexuais, transgêneros e travestis

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Matheus Januário, Juliano Duarte, Ediraldo Ramos e Liana Paula durante a assinatura da Lei 3.578, que prevê cotas de emprego para a população trans - Foto: Reprodução/Facebook
Historicamente estigmatizada e relegada a lugares de marginalidade, a população formada por transexuais, transgêneros e travestis na cidade de Mariana tem uma primeira política pública para que haja equilíbrio na busca por uma colocação no mercado de trabalho formal. A pauta é discutida há bastante tempo no âmbito de grupos e coletivos LGBTQIAP+ e, lentamente, começa a ultrapassar limites impostos pelas estruturas sociais a fim de garantir condições justas e eficazes para pessoas cuja identidade de gênero difere daquela que lhes foi atribuída ao nascer. O projeto é de autoria do vereador Ediraldo Ramos (AVANTE), e deu origem à lei 3.578, publicada no Diário Oficial em 20 de junho de 2022, assinada pelo ex-prefeito Juliano Duarte com a presença de integrantes do coletivo Mães da (R)existência.

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Em seu primeiro mandato, Ediraldo explica que já conhecia muitas pessoas trans pessoalmente, levando-o a perceber as dificuldades enfrentadas por elas no cotidiano. Ele havia conhecido Liana Paula, 22 anos, graduanda de Pedagogia na UFOP, quando ela o procurou para conversar sobre a retificação de seus documentos, após perceber a defasagem destes processos durante a pandemia. Seus relatos sobre a dificuldade de entrar no mercado de trabalho como uma mulher trans foram parte da motivação para a escrita do projeto de lei 56/2022, visando “a implementação de cotas exclusivas para a população trans […] em nível municipal, dando importância às políticas públicas que atendam às suas especificidades e permita a sua inserção na sociedade através da oferta de oportunidades”.

Como relata Liana, as situações de constrangimento são recorrentes, tendo vivenciado rejeição ao se apresentar para oportunidades de trabalho quando os recrutadores tomavam conhecimento de sua transexualidade. Em uma cultura local fortemente ligada à religião e ao tradicionalismo, cria-se um ambiente pouco promissor para essa faixa da população, o que a afasta de uma perspectiva de ascensão social.

O vereador Ediraldo Ramos, que propôs a lei de cotas para pessoas trans no mercado de trabalho, em seu gabinete na cidade de Mariana. Foto: Kaio Veloso/Agência Primaz

Anteriormente, o vereador Cristiano Silva Vilas Boas havia apresentado o projeto para instituir a Semana Municipal da Luta LGBTQIAP+ na cidade, que entrou em vigor com a lei 3.329, de 11 de março de 2020. No entanto, a nova lei é a primeira que prevê a inclusão de forma similar às cotas raciais, buscando diminuir uma diferença perpassada por estigmas sociais que atingem diretamente a população à qual se destina. A lei prevê a reserva de vagas em concursos dos órgãos públicos da cidade, além das empresas que prestam serviços terceirizados para a prefeitura municipal. A adesão de empresas no município será feita de forma voluntária, como explica Ediraldo. Questionado sobre mecanismos para assegurar o cumprimento da lei, o vereador afirma que qualquer irregularidade, em relação à oferta de vagas em concursos futuros, poderá ser comunicada ao Ministério Público, além de ser importante que haja um acompanhamento das empresas prestadoras de serviços. Ele afirma que há interesse de um colega, vereador em Ouro Preto, em propor a lei de cotas para pessoas trans também na cidade vizinha, onde foi realizada este ano uma edição da parada LGBTQIAP+.

Cidade, estigma e representação

Liana Paula e Matheus Januário, representando o coletivo Mães da (R)existência, receberam convite de Juliano Duarte, que ocupava o cargo de prefeito municipal naquele momento, para comparecer ao ato de assinatura da lei. Na ocasião, eles puderam afirmar a importância de políticas públicas como essa. Otimista, Ediraldo comenta que ações de grupos e campanhas contribuem para uma diminuição dos preconceitos: “Essas pessoas da nova geração são quase todas sem essa discriminação […] eles têm a cabeça diferente da minha geração, que era mais problemática”, avalia.

O vereador Ediraldo Ramos, a estudante Liana Paula e o ex-prefeito interino Juliano Duarte, durante a assinatura da lei 3.578. Foto: Reprodução/Facebook

Falando sobre a relação do município com a diferença sexual e de gênero, Matheus revela que a socialização de pessoas trans transcende as questões do mercado e revela lógicas sobre a própria cidade, existindo, em uma cultura já enraizada, locais onde essa população pode ou não transitar, e horários em que é percebida a sua presença no centro, remetendo aos processos de marginalização. “O centro de Mariana não contrata [pessoas trans]. Os grandes empresários, quem movimenta a economia de Mariana, sabem do que estou falando. Você não vê pessoas travestis e transexuais empregadas. Mas de madrugada, o centro tem pessoas travestis e transexuais, por que será? De dia, elas têm que viver só na comunidade delas”, declara Matheus.

Criticando a ausência de uma cultura que contemple este público e que torne visível suas vivências e demandas, ele adverte para a falsa sensação que os problemas, como a permanência de preconceitos, possam ser resolvidos apenas com a aprovação de leis. “A participação do público LGBTQIAP+ na cidade de Mariana é mínima, seja na área cultural, educacional, e profissional, principalmente, e é esdrúxulo da parte dos políticos achar que por criar uma lei a gente vai estar incluso, e não fazer mais nada por isso”, ressalta.

As observações de Matheus se estendem à falta de representação política, comentando que, entre todos os vereadores de Mariana, há apenas uma mulher, branca (referindo-se à Sônia Azzi). Ele cita as vereadoras transgênero Duda Salabert, (a mais bem votada da história de Belo Horizonte), e Erika Hilton, (primeira vereadora trans de São Paulo e a mais votada no país nas eleições de 2020), indicando o modo como outras localidades já se mostram avançadas nesse quesito, o que tem grande impacto na garantia de direitos.

Parte da população que poderá ser contemplada com a nova lei, Liana faz uma ligação entre a falta de oportunidades e o lugar da escolaridade nesse processo: “A gente vê que 90% das transsexuais, travestis e transgêneros estão na prostituição, justamente por falta de oportunidade no mercado de trabalho, porque cobram muito delas também a questão do ensino, que é excludente. […] A gente vê uma defasagem muito grande [de pessoas trans na educação] por causa de bullying, preconceito sobre esses corpos dentro daquele ambiente”. Ela comenta que já foi procurada por muitas meninas trans, pedindo informações sobre como conseguir uma colocação no mercado de trabalho, motivo pelo qual acredita que a lei será um mecanismo interessante de inclusão, servindo como porta de entrada para que elas possam realizar seus sonhos.

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O coletivo Mães da (R)existência

O coletivo foi criado num só pensamento, reunir as mães e convidar aquelas que se encontram no armário a sair e ajudar seus filhos, nesse mundo cheio de preconceito. A história por trás da criação do coletivo é uma só: respeito”.

Com essas palavras, Teresa de Jesus Souza, técnica de enfermagem e mãe de uma mulher lésbica, explica as origens do Mães da (R)existência, formado em 2019. Pioneiro na cidade, o coletivo se configura como socioeducativo, proporcionando, através de uma equipe multidisciplinar, palestras sobre a diversidade sexual e de gênero, além de acesso a cuidados quanto à saúde mental e direitos civis, dentre outros, para a população.

Além de Teresa, outro morador local possui um papel fundamental na união de forças para tornar o projeto possível. Matheus Januário Pereira, 24 anos, é morador de Mariana e, aos 19, assumiu sua homossexualidade, atitude que acredita ser importante não apenas para si próprio, como também para o seu entorno. Nascido e criado em uma família religiosa, ele conta que se sentia trancado e inseguro quanto à sua sexualidade. Já há algum tempo atua com projetos de dança e teatro, e relata que seu encontro com Teresa, a fundadora do coletivo, ocorreu quando trabalhava em um hospital, onde firmaram o compromisso de levar o projeto adiante.

Matheus Januário, homem gay, e Liana Paula, mulher trans, atuam como integrantes do coletivo Mães da (R)existência. Foto: Kaio Veloso/Agência Primaz

Matheus conta que os planos do coletivo incluem ter uma sede, similar à Casa da Mulher, através da Prefeitura Municipal, que possa servir à população LGBTQIA+ e suas famílias. “Seria uma casa de apoio, onde as pessoas poderiam procurar e futuramente estar denunciando qualquer tipo de assédio ou violência, procurar ajuda em relação a emprego. Então, dali dessa casa de apoio vai partir [o direcionamento] para empresa, médico, advogado“, explica. Ele também destaca o papel do coletivo junto às famílias, uma vez que este foi pensado a partir da experiência de uma mãe. “Muita gente acha que só quem carrega uma letra da sigla que sofre, mas a família também. Então essa casa de apoio serviria como espaço para as pessoas se auto educarem, e entenderem melhor”, complementa.

No momento, há demanda por novos profissionais para suprir as necessidades do coletivo, especialmente nas áreas de psicologia, advocacia e serviço social, visto que, muitos se afastaram por dificuldades pessoais, com alguns integrantes mudando-se de cidade, durante a pandemia.

Liana Paula, também natural de Mariana, é uma das integrantes que permanece. Ela explica que, ao longo de sua vida, não teve referências para compreender os processos pelos quais estava passando. Criada em uma família conservadora, teve receio quanto à reação dos pais, considerando também acontecimentos e violências recorrentes a pessoas dissidentes de gênero. Aos poucos, conseguiu pesquisar sobre o assunto e, com o apoio de uma prima, além de outras mulheres trans que conheceu, pôde obter mais informações, dando início à transição de gênero aos 17 anos.

Ela teve contato com o coletivo pelas redes sociais e decidiu participar das atividades, pois trata-se do primeiro movimento deste tipo na cidade. A princípio, foi secretária e auxiliava com a redação e correções gramaticais. Posteriormente, realizou palestras sobre preconceito de marca (definido por critérios quanto à aparência e cor de pele) e de origem (relativo à descendência) no Hospital Monsenhor Horta. Seu objetivo foi fazer ligação entre tais formas de preconceito e suas manifestações em relação à população LGBTQIA+ que, no caso de pessoas trans, há julgamentos que passam também pela sua marca/imagem ao se apresentarem socialmente.

A estudante universitária conta que optou pela Pedagogia por seu interesse em cursar o ensino superior e por já ter ministrado aulas de literatura e música, no âmbito de movimentos sociais. Ela afirma que através de sua atuação como educadora, gostaria de transformar os preconceitos presentes no olhar tanto de crianças quanto de seus pais. Em suas experiências com estágios, revela que já houve uma situação de constrangimento quando ainda estava iniciando seu processo de transição. Contudo, ela conta que também ocorreram situações em que foi bem recebida, mostrando que é possível construir relações profissionais dentro do ambiente escolar a partir do respeito.

Empolgados, Matheus e Liana já possuem novas atividades que pretendem colocar em prática. Uma das ideias é a realização de um ciclo em que cada semana será destinada a uma letra da sigla. Assim, os participantes terão a oportunidade de aprender tudo sobre aquela orientação sexual ou identidade de gênero com qualidade e através de uma diversidade de estratégias, como o uso de mídias e participação de representantes locais.

A sigla

Durante a entrevista, Liana revela que muitas pessoas, como sua própria mãe, não conhecem todas as letras da sigla e que, muitas vezes, as discussões sobre orientação sexual e identidade de gênero são superficiais.

A seguir, apresentamos o significado, em sua forma mais utilizada atualmente, ressaltando que orientação sexual (gays, lésbicas e bissexuais, além de outras manifestações, como a assexualidade e a pansexualidade) não possui ligação com identidade de gênero (transexuais, transgêneros e travestis). Trata-se de conceitos distintos, havendo a possibilidade de uma pessoa trans possuir uma orientação heterossexual ou homossexual. 

L – Lésbicas são mulheres (cis ou trans) que possuem atração afetiva/sexual por outras mulheres.

G Gays são homens (cis ou trans) que possuem atração afetiva/sexual por outros homens.

B – Bissexuais. Aqui, é preciso atenção, pois há um equívoco recorrente em definir a bissexualidade como atração por homens e mulheres, apoiando-se na ideia binária de sexo/gênero. No entanto, o Manifesto Bissexual Brasileiro classifica como bissexuais as pessoas para quem o gênero não é um fator determinante da atração afetiva/sexual.

T – Transsexuais e transgêneros são pessoas que expressam uma identidade de gênero distinta daquela que lhe foi atribuída ao nascer, diferindo, portanto, do sexo/gênero biológico. Podem ou não se submeter a processos hormonais e cirúrgicos, como forma de adequar sua fisionomia ao gênero com o qual se identificam. Travesti é um termo que historicamente, possui uma carga pejorativa. Utilizado na América Latina, trata-se de uma palavra para se referir a pessoas transexuais/transgênero, possuindo também um recorte de classe social. Hoje, a autoafirmação como travesti possui também um significado político, como subversão do uso pejorativo e valorização da origem periférica.

Q – Queer é uma palavra da língua inglesa cujo significado se aproxima de “estranho” ou “excêntrico” e cuja tradução usual para a língua portuguesa corresponde a palavras de teor pejorativo, como “bixa”. Pessoas que se identificam como queer se reconhecem para além de espectros de gênero e sexualidade tradicionais, e transitam entre os espaços da binaridade (homem/mulher) na constituição de sua identidade.

I – Intersexuais – São pessoas que, ao nascer, apresentam características que não se encaixam nas definições tradicionais de sexo masculino ou feminino. Tais manifestações, que ocorrem usualmente pela variação genética, podem ser visíveis na fisionomia desde o nascimento ou apenas após a puberdade. Historicamente, pessoas intersexuais foram submetidas, logo ao nascer, a procedimentos médicos para inibir características e encaixá-las em apenas um gênero. Ao crescer e desenvolver suas características e identidades de gênero, muitas dessas pessoas enfrentaram sofrimento psíquico, até que sua intersexualidade lhes fosse revelada.

A – Assexuais São pessoas que não manifestam atração sexual por outras, embora ainda possam manter relacionamentos afetivos. Agêneros são pessoas que não se identificam como um gênero específico. Pode ser considerada como uma expressão de gênero não binário.

P – Pansexuais e Polissexuais são pessoas que possuem atração afetiva/sexual por outras pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, partindo do pressuposto de que o sistema sexo/gênero extrapola uma lógica binária (homem/ mulher). Na prática, há pouca diferença entre pansexuais, polissexuais e bissexuais, levando-se em consideração as definições mais aceitas hoje.

Fontes: Blue Vision Brasken; Manifesto bissexual brasileiro; Tempero Drag; Manifesto Contrassexual (2002), de Paul Preciado; Instituto de Psicologia Aplicada; Dicas de Mulher.

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