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Hoje é segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Tricentenária, Catedral da Sé entra na reta final da restauração

Com o templo fechado desde fevereiro de 2016, as celebrações oficiais da Arquidiocese de Mariana passaram a acontecer a 300 metros dali, na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, que funciona como Catedral de forma provisória

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Catedral vista da Praça da Sé – Foto: Pedro Henrique Hudson
Na porta do casarão de nº 84 da rua Frei Durão, onde hoje funciona a Academia Marianense de Letras, Francisco Assis Santos (72) conta empolgado da novena do Divino Espírito Santo que aconteceu na Igreja da Confraria. O aposentado é um dos integrantes do Coro do Mestre Vicente, grupo que fez os tradicionais cantos da festa religiosa que este ano começou em 27 de maio e terminou no final de semana de 4 e 5 de junho com o levantamento da bandeira e a coroação do imperador. Nascido e criado em Mariana (MG), Francisco começou a participar da vida religiosa da cidade ainda criança, ajudando nas missas do outro lado da rua onde bate ponto diariamente para trabalhar como voluntário na Casa de Cultura. Aos 11 anos já acordava cedo para ser coroinha nas missas das seis da Catedral da Sé. Ali ele também se recorda de tocar os sinos, chamando os marianenses para as celebrações na igreja setecentista que mistura traços do barroco e do rococó.

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Os sinos que Chico tocava ecoaram pela última vez na celebração de Corpus Christi, quando toda a comunidade, reunida na Praça da Sé, alimentava a esperança de este ser o último ano em que a celebração aconteceu com a primeira catedral de Minas de portas fechadas.

A Catedral da Sé, única das primeiras catedrais do Brasil que ainda preserva suas funções religiosas, não é aberta aos fiéis desde 14 de fevereiro de 2016 quando Dom Geraldo Lyrio Rocha, então Arcebispo de Mariana, celebrou a última missa na igreja, iniciando oficialmente as obras de restauração.

Na primeira fase, que ficou a cargo da Sepres Engenharia, foi trabalhada toda a parte estrutural da construção; foram restaurados os pisos, forros, a cobertura, as instalações sanitárias e foi feito o reforço da estrutura, quando foram localizadas ossadas de pessoas que foram sepultadas no pátio externo da igreja no século XIX.

O resgate arqueológico feito pela Status Arqueologia encontrou também objetos como cachimbos e crucifixos, associados à população negra. O relatório produzido pelos arqueólogos indicou a possibilidade de as ossadas serem de vítimas de alguma epidemia do século XIX. A baixa profundidade e o local onde estavam sepultados, no exterior da construção, reforça a hipótese de que se tratava de escravizados. Até meados da década de 1870 ainda era comum o sepultamento de pessoas em igrejas, mas apenas pessoas livres eram sepultadas em seu interior.

Outro achado importante aconteceu ainda no início da restauração, quando um estudo feito na fachada conseguiu chegar às cores primitivas da catedral. Uma votação entre os fiéis decidiu pela mudança de cor e o verde e o cinza, cores da pintura recente, deram lugar ao vinho e bege encontrados nas primeiras camadas de pintura da construção.

A segunda etapa, executada pela Cantaria Conservação e Restauração e finalizada em março de 2021, cuidou da parte elétrica da Catedral, que ganhou também uma iluminação especial para valorizar os seus elementos artísticos, que estão sendo restaurados pela equipe de Anima, Restauração e Arte. A Anima trabalha no interior da Catedral da Sé desde janeiro de 2019.

Após três anos, a expectativa é que as obras sejam concluídas no próximo mês de julho, data limite para o fim da terceira fase da restauração. Nesta etapa estão sendo restaurados os elementos artísticos integrados, como as pinturas dos forros e os douramentos dos altares.

Com acesso limitado, poucas pessoas tiveram a oportunidade de entrar na Catedral em obras e os que conseguiram, como os participantes do Simpósio Filosófico-Teológico organizado pela Faculdade Dom Luciano Mendes (FLM), não puderam esconder a surpresa com o interior da igreja quase totalmente restaurado.

Os elementos artísticos

Era noite de quinta-feira, 26 de maio, quando cerca de 130 pessoas ocupavam a nave da Catedral da Sé para a conferência da Faculdade Dom Luciano. O público, formado em sua maioria por seminaristas, aguardava o começo das palestras do dia enquanto percorria os corredores da catedral observando os retábulos laterais, oito no total, recém-restaurados pela equipe da Anima. O evento, primeiro que acontecia no interior da igreja desde 2016, contou com a presença de profissionais da área para explicar as obras da terceira etapa da restauração.

Quem olhava de perto, conseguia ver com mais detalhes como está sendo feita a restauração dos elementos artísticos integrados da igreja. Ponto a ponto são reconstituídos os douramentos e as pinturas do paravento, dos altares, dos forros e de outros objetos artísticos que fazem parte da estrutura da catedral.

Arthur Coelho, 33, arquiteto responsável pelas obras e um dos palestrantes da noite, explica que a restauração é feita dessa forma para que de longe se possa ver o elemento como era originalmente, mas de perto seja possível diferenciar as intervenções feitas nele. Ele afirma que diferenciar as alterações feitas nos bens durante o processo de restauração é essencial para que não se crie um falso histórico.

Retábulo de Santa Bárbara após a restauração – Foto: Pedro Henrique Hudson

Dos altares laterais, o mais simples deles foi o que trouxe a maior surpresa. O retábulo dedicado a Santa Bárbara escondia por baixo de uma pintura simples, em tinta branca, sua pintura original, em parte danificada e que foi reconstituída no tratejo e no pontilhismo, procedimentos que utilizam pequenos traços e pontos para recuperar a parte perdida. Essa camada de tinta foi totalmente removida com bisturi cirúrgico, em técnica semelhante à usada nos pilares laterais, antes cinza e agora com um tom palha que contrasta melhor com o ambiente da Sé.

O paravento era outro ponto que chamava a atenção. Também restaurado na técnica do pontilhismo, ele foi um dos itens que deu mais trabalho aos restauradores e só foi finalizado recentemente, após três anos de intervenções. Para Arthur, a localização do paravento, onde há incidência de sol e chuva, contribuiu para a sua deterioração, e a espessa camada de cera encontrada, após ser removida, revelou que a base da parte frontal perdeu grande parte da policromia, tornando mais delicada a restauração do bem.

Capela-mor vista da nave. Pintura de Nossa Senhora da Conceição e cadeiral dos cônegos ao fundo – Foto: Pedro Henrique Hudson

Mais ao fundo, a pintura de Nossa Senhora da Conceição, a quem a igreja era dedicada inicialmente, não mostrava o trabalho minucioso executado na sua restauração. Como uma outra equipe estaria trabalhando no retábulo em que a imagem estava inserida, foi preciso montar uma mesa especial para abrigar a tela na Sala da Morte durante o período em que estava sendo restaurada. Ali, foi feita a remoção do reentelamento antigo, da década de 1960, e feito um novo reentelamento, com a remoção do verniz oxidado que dava à pintura uma aparência escurecida. Nos locais onde apresentava alguma falha foi feito também o nivelamento com gesso e a reintegração da policromia com tinta vegetal.

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Após esses procedimentos a pintura ainda ficou em repouso por mais dois meses para ver se não haveria nenhuma movimentação. Depois, retornou para o retábulo-mor. A tela foi encomendada do Rio de Janeiro e substitui o camarim, nicho onde ficavam as imagens de devoção, que teve de ser removido quando o altar principal foi ampliado para abrigar o cadeiral dos cônegos, quando a antiga igreja matriz estava sendo adaptada para as funções de catedral, na década de 1750.

O cadeiral, construído para receber os vinte cônegos do cabido, que exerciam as atividades religiosas da catedral, também foi restaurado e conserva registros importantes da chinesice presente no barroco mineiro. As pinturas em tom de vermelho retratando cenas do cotidiano, como caças e pescas, estão presentes também no órgão Arp Schnitger, doado por Dom João V em 1748. O órgão raro teve sua caixa restaurada e dedetizada contra cupins e as pinturas reconstruídas na mesma técnica do pontilhismo usada no restante da igreja. O instrumento estava coberto por tinta a óleo que teve de ser removida antes da reconstituição das pinturas originais.

Os restauradores aguardam agora a chegada de Frederic Desmottes, organeiro francês radicado na Espanha que fará a montagem dos 1039 tubos do órgão, que estão armazenados no porão do Museu de Música. Para a afinação, será preciso trabalhar no período da noite, já que a movimentação da Praça da Sé durante o dia pode dificultar o processo.

Josinéia Godinho (55), mestre em Musicologia pela UFMG e organista da Arquidiocese de Mariana, explica que a montagem e afinação será feita por Desmottes porque “o sistema de construção e funcionamento do órgão tem diversas particularidades” e no processo de remontagem dos tubos serão feitas também as correções dos danos que eventualmente eles tenham sofridos durante o armazenamento. Para isso, diz ela, “é de vital importância que o profissional possa fazer o trabalho com eficiência e segurança para o instrumento.”

O que ainda não está confirmado é a volta dos concertos que Josinéia fazia no Arp Schnitger. No evento do dia 26 ela, que foi uma das convidadas, reforçou o desejo de voltar a tocar o instrumento. À reportagem, ela disse que a “expectativa para a reabertura da Catedral com o órgão funcionando, é a de reavivar os séculos de história, da igreja e do órgão”.

A união de ambos [da Catedral e do Arp Schnitger] aconteceu por causa da importância da Diocese de Mariana no panorama do Brasil Colonial. Para dar “pompa ao culto divino da primeira diocese de Minas”, o órgão foi mandado para cá e a sua presença, seja na liturgia ou em outros momentos, representa a continuação de uma grande tradição musical que precisa ser mantida. (Josinéia Godinho)

Depois do órgão montado e afinado, restarão apenas as imagens da catedral para serem restauradas. Como não fazem parte da estrutura da igreja, elas não foram contempladas pelo PAC Cidades Históricas. A Paróquia de Nossa Senhora da Assunção já enviou um projeto de restauração ao IPHAN e aguarda a aprovação para iniciar uma campanha junto aos fiéis para arrecadar recursos. Segundo Arthur, da Anima, as imagens estão em estado de conservação diversos, mas precisam ser restauradas e tratadas contra insetos para evitar a propagação de cupins no restante da construção.

Isso será feito após a entrega das obras, prevista para o dia 18 de julho, e com as celebrações já de volta à catedral. Cônego Nedson de Assis, responsável pela paróquia, afirma que tão logo as obras sejam finalizadas as celebrações devem retornar à Sé. Em entrevista, ele relembrou a importância da igreja para Minas e para a comunidade marianense, que tem a Catedral da Sé como “ponto de referência da fé”.

“Ela [a Catedral] não é apenas uma referência artística e cultural. Ela é antes de mais nada uma referência de fé, é a mãe de todas as igrejas e catedrais de Minas. Isso é muito importante, porque aqui se inicia Minas Gerais e aqui se inicia a evangelização no interior do país.” (Cônego Nedson de Assis)

Essa importância ficou clara em 1961, quando pela primeira vez em mais de dois séculos a imagem de Nossa Senhora Aparecida deixou a cidade de Aparecida (SP) para visitar Minas Gerais. Em dois dias de festa, mais de 40 mil pessoas passaram pela Catedral da Sé para ver a santa que havia sido encontrada no rio Paraíba do Sul em 1717. A fila para entrar na catedral deu a volta na rua Direita e chegou à antiga rodoviária.

Arcebispo Dom Oscar recepcionando a imagem de Nossa Senhora Aparecida – Foto: Acervo pessoal/João Vicente

Francisco Assis já era coroinha nessa época, mas estudava no Dom Benevides e não pôde ajudar nas celebrações presididas pelo Cardeal Motta. O colégio era um dos que participariam do desfile em comemoração aos 250 anos de Mariana e à visita da santa, que reuniu dezenas de autoridades civis e religiosas.

No centro das celebrações estava a Catedral da Sé, responsável por recepcionar a multidão de fiéis que brotaram de todos os cantos. Aqueles mesmos sinos que tocaram no Corpus Christi ecoaram nas duas torres da igreja enquanto a imagem era recebida com honras de chefe de Estado, sob a guarda dos Dragões da Independência, e era acomodada no trono montado no altar principal pelas irmãs Carmelitas.

Mais prestigiada que Nossa Senhora Aparecida foi apenas Nossa Senhora do Carmo, padroeira de Mariana, e que naquele mesmo dia foi coroada pelo Arcebispo Dom Oscar de Oliveira. Ele recebeu a coroa de ouro das mãos do governador Magalhães Pinto.

Foi a melhor festa que vi até hoje. […] Uma festa maravilhosa”, conta Francisco, relembrando a multidão que tomou conta da Praça da Sé e entrava na igreja pelas portas laterais. Enquanto olha para as torres, onde ficam os sinos que tocava quando criança, ele espera agora as festas pela reabertura da catedral e alimenta a esperança de subir ali novamente ao fim das obras, para anunciar aos marianenses que a igreja está sendo devolvida. “Já falei com ele [Cônego Nedson]. Se ele deixar, no dia que tiver pronto, eu subo por ali, vou lá e faço essa surpresa para o povo de Mariana”, finaliza.

Pedro Henrique de Oliveira Hudson é estudante do 3º periodo do curso de Jornalismo (Instituto de Ciências Sociais Aplicadas/Universidade Federal de Ouro Preto). Esta reportagem foi produzida durante a disciplina Apuração, Redação e Entrevista.

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