- Ouro Preto
Festa de 300 anos de Nossa Senhora da Lapa é marcada por protesto dos atingidos de Antônio Pereira
Também houve a celebração de várias missas e a realização do tradicional jubileu na segunda-feira (15)
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O entrave entre os moradores de Antônio Pereira e a Vale já perdura há mais de dois anos, quando a mineradora iniciou o descomissionamento da barragem Doutor, três vezes maior que a que se rompeu em Brumadinho. Em maio de 2021, a estrutura voltou ao nível 1 de emergência, mas cerca de 144 famílias foram removidas de suas casas. Algumas puderam retornar após a estabilização do nível de emergência da barragem, mas outros permanecem em hotéis e casas alugadas pela Vale.
Além de reparação de danos à saúde, lazer e qualidade de vida, os moradores de Antônio Pereira também cobram pelo direito de terem uma Assessoria Técnica Independente (ATI) durante o processo de reparação dos danos causados pela Vale no distrito. A mineradora também recorreu judicialmente dessa decisão e ainda não há uma definição sobre a garantia da ATI para a comunidade.
“Nós entendemos ser importante trazer essa luta para esse momento de festa, porque são 300 anos de muitas graças e muitas bençãos derramadas no nosso território. Nossa Senhora apareceu para algumas crianças e escolheu ficar aqui, porque acredito que ela sabia que esse lugar precisava de um carinho de uma mãe. A Frente Mineira de Luta tem nos apoiado nesses momentos difíceis, em especial nessa luta contra a mineração predatória que insiste a todo tempo violentar direitos, agredir os moradores e que não quer diálogo, que fica oferecendo migalhas no lugar dos nossos direitos”, declarou Maria Helena, integrante da Frente Mineira de Atingidos e Atingidas pela Mineração e do coletivo “Guerreiras de Antônio Pereira”, à Agência Primaz.
Os moradores de Antônio Pereira também acusam a Vale de proibir os garimpeiros tradicionais de praticarem o garimpo, atividade tricentenária no distrito. “A Vale tem mandado Polícia Ambiental e Polícia Federal prenderem mulheres, crianças e trabalhadores, os tomando ferramentas. O garimpeiro tradicional é amparado por lei, é o nosso direito. Antônio Pereira, Ouro Preto e Mariana só existem por causa dos garimpeiros tradicionais”, contou Wilson Nunes, presidente da Associação dos Garimpeiros de Antônio Pereira, à Agência Primaz.
Wilson crê que Nossa Senhora da Conceição da Lapa tenha aparecido para uma criança filha de garimpeira, por conta da época. O garimpo nasceu pouco tempo depois do nascimento de Antônio Pereira e, por isso, a história da atividade e do distrito estão ligadas em suas origens. “Neste ano, nós estamos comemorando 300 anos da aparição de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Segundo a história, Antônio Pereira é seis anos mais novo que Ouro Preto. Então, nós estamos homenageando o garimpeiro tradicional por seus 300 anos”, acrescentou.
Nunes criticou a omissão do governo municipal e do poder Legislativo de Ouro Preto perante à luta pela reivindicação dos direitos da população de Antônio Pereira. “Faço um pedido ao Angelo (prefeito) e a alguém da Câmara que esteve na festa. Não nos acolheram. Nós fomos em 96 pessoas para Ouro Preto em um manifesto em defesa dos nossos direitos e não nos ajudaram. Nos ajude, por favor, é uma ajuda para famílias, salvando o futuro de várias crianças. Ainda dá tempo. Precisamos defender o direito do garimpeiro tradicional que é a garantia de subsistência das pessoas mais pobres”, concluiu.
Em entrevista à Agência Primaz, Angelo Oswaldo (PV), prefeito de Ouro Preto disse que a prefeitura tem feito grandes investimentos em Antônio Pereira, em parceria com a Samarco e com a Vale. “Além do tributo pago ao Município, ao Estado e à União, é uma corresponsabilidade cidadã das empresas que sabem seus papéis ao se inserirem em uma comunidade. Estamos atentos a isso para estabelecermos essa rede de cooperação, visando o melhor para a população de Antônio Pereira”, afirmou.
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O que diz a Vale
Há cerca de um mês, a Vale encaminhou uma nota à Agência Primaz informando que iniciou a remoção programada da Zona de Autossalvamento da barragem Doutor, em 2020, passando a atuar para que a comunidade de Antônio Pereira retome as condições de vida anteriores. “A empresa não tem medido esforços no sentido de reparar e compensar, de forma justa e célere, os transtornos causados no distrito. As ações de compensação e desenvolvimento são definidas a partir da escuta ativa dos moradores, do diálogo com o poder público e da participação direta de representantes da comunidade para que as principais necessidades locais sejam conhecidas e priorizadas”.
Ainda de acordo com a Vale, é realizado o monitoramento contínuo dos trabalhos, de modo a identificar e eliminar, quando possível, ou reduzir os impactos das obras de descomissionamento da barragem Doutor. “Em Antônio Pereira, os compromissos assumidos pela empresa com a redução de impacto das obras estão sendo cumpridos, como, por exemplo, a umectação rotineira das áreas diretamente impactadas”, informa na nota, ressaltando que a contratação da assessoria técnica para os atingidos está em discussão em âmbito judicial.
Doutor é uma das 30 estruturas mapeadas no Programa de Descaracterização da mineradora, e a previsão atual é de que a estrutura esteja completamente descaracterizada até 2029. Nesta terça-feira (16), a Vale enviou nota à Agência Primaz reafirmando o seu compromisso com a reparação no distrito. “As famílias que residiam na Zona de Autossalvamento (ZAS) da barragem recebem assistência integral da Vale desde que foram evacuadas. A empresa arca com despesas fixas (aluguel, IPTU, água e luz), cesta básica e gás, as famílias recebem acompanhamento psicossocial, pelos profissionais do Programa Referência da Família, e têm à disposição a equipe de Relacionamento com a Comunidade (RC) da Vale”, afirmou.
A Vale também informou que a empresa disponibiliza o Programa de Assistência Integral ao Atingido, que oferece apoio psicossocial, educação financeira, orientações para a compra de imóveis e para a retomada produtiva. Isso permite que as famílias possam planejar o futuro diante das novas condições econômicas e socioambientais.
De acordo com a Vale, um Plano de Compensação e Desenvolvimento foi construído a partir da escuta ativa da comunidade e do diálogo com o poder público, tendo participação direta de representantes dos moradores.Com valor total de R$55 milhões, o objetivo do plano consiste na implementação de medidas, de caráter compensatório, voltadas à infraestrutura urbana, saúde, educação, lazer, cultura e turismo, dentre outras. O trabalho está dividido em duas fases.
Na primeira, R$25 milhões estão sendo destinados a obras, ações e projetos considerados prioritários definidos a partir de solicitações da comunidade e do poder público. Entre elas, segundo a Vale, importantes entregas já foram feitas. É o caso da reforma do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que beneficia mais de 840 famílias em situação de vulnerabilidade, da reforma da Escola Estadual Professora Daura de Carvalho, que proporcionou mais bem-estar e segurança a cerca de 600 alunos e professores, da reforma de pontos de ônibus no distrito e da construção da contenção tipo gabião no rio Tabuleiro. Para este ano, outras obras também estão previstas.
Na segunda fase, R$30 milhões serão investidos em ações selecionadas pelo Comitê do Plano de Compensação e Desenvolvimento de Antônio Pereira: um projeto participativo com maioria de representantes da comunidade, além da participação do poder público e da Vale. Coube ao grupo organizar as mais de 2 mil sugestões de melhoria para o distrito, levantadas em consulta popular realizada pela empresa, e priorizar a aplicação do recurso para iniciativas nas áreas de saúde, infraestrutura, desenvolvimento econômico, educação, meio ambiente, entre outros.
“O incentivo à criação de novas frentes de negócio e o fortalecimento de cadeias produtivas existentes é outra frente de compensação em Antônio Pereira. Por meio de projetos de capacitação, apoio ao empreendedorismo, à economia circular e ao desenvolvimento de tecnologias para o bem-estar, a educação e o desenvolvimento rural, a empresa cria alternativas para aumentar a renda familiar da população e diversificar a economia. Uma dessas iniciativas é o Projeto Horizonte que já capacitou direta e indiretamente mais de 1.200 empreendedores em todos os seus territórios de atuação e, atualmente, em Ouro Preto, acelera sete novos negócios, que recebem até R$60,8 mil cada em capital semente – uma importante contribuição para que as empresas deem seus primeiros passos”, complementou a mineradora.
O vereador que representa Antônio Pereira, Vander Leitoa (Solidariedade), no entanto, vê que a Vale precisa rever suas ações no distrito. “Ela (mineradora) tem que ouvir a comunidade, porque nós estamos com um monstro aqui por cima da nossa cabeça, a barragem Doutor. Então, nós estamos sofrendo. Da Gruta da Lapa dá para ver a imagem da barragem que é muito feia e muito negativa”, comentou à Agência Primaz.
Ausência de Assessoria Técnica Independente
Em setembro de 2021, a Juíza Kellen Cristini, da Comarca de Ouro Preto, afirmou que é indiscutível o direito dos atingidos em Antônio Pereira à Assessoria Técnica Independente (ATI) durante o processo de reparação dos danos causados pela Vale no distrito, mas a mineradora recorreu da decisão e ainda não há uma definição sobre a garantia da ATI para a comunidade.
O Instituto Guaicuy foi eleito, em fevereiro de 2021, com 67,34% dos votos da comunidade, como entidade responsável pela ATI para os atingidos de Antônio Pereira. O resultado foi homologado pela Justiça no mês seguinte e, em maio, apresentou a primeira versão do plano de trabalho, construído junto com a população local. O Ministério Público aprovou o documento, que foi apresentado à juíza.
De junho em diante, o percurso processual vem prolongando a espera e aumentando a aflição dos atingidos, que exigem a presença da ATI para que possam ter acesso a informações técnicas confiáveis e independentes para dimensionar perdas, materiais e intangíveis, provocadas pela ação da mineradora.