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Hoje é quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Vereadores propõem abertura de CPI para esclarecimentos sobre o Caso Dom Bosco

Inspetoria São João Bosco, atual proprietária do terreno, diz manter diálogo aberto com a população de Cachoeira do Campo

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Gramado, cerca metálica e árvores á frente da fachado do Colégio Dom Bosco
Edifício tombado do século XVIII será reformado a partir de setembro. Crédito: Vinicius Dias/Reprodução Flickr
O destino do prédio e das imediações do antigo Colégio Dom Bosco voltaram a ganhar notoriedade no debate ouropretano. Durante a 21ª Audiência Pública da Câmara Municipal, realizada no distrito de Cachoeira do Campo, no último dia 31, autoridades municipais, juntamente com a comunidade local, discutiram sobre o destino da propriedade que abriga um dos mais importantes patrimônios históricos e arqueológicos da região. Na ocasião, um vereador chegou a propor a interdição da Rodovia dos Inconfidentes, como forma de pressão para a solução do caso. Após um imbróglio judicial que se arrastou por mais de uma década, o Ministério Público assegurou que o terreno pertence ao Salesianos, sem qualquer condicionante à utilização.

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A edificação principal que abrigou o renomado Colégio Dom Bosco data do século XVIII. As “Escolas Dom Bosco”, como também é conhecido o local, possui estilo neocolonial, e o prédio foi utilizado não só como sede de unidades de ensino, mas com outras diversas finalidades. Durante o período colonial, a propriedade pertencente a Coroa Portuguesa abrigou o Quartel do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais, exercendo importante papel nas revoltas de Filipe dos Santos (1720) e na do Ano da Fumaça (1883), e na Inconfidência Mineira (1789). Após visita do Imperador Dom Pedro II à região, o terreno que funcionava como um centro de criação de cavalos de raça, passou a abrigar uma colônia agrícola, tendo sua função social instituída a partir dali. Com o advento da República, o recém-criado governo não assumiu a propriedade das terras, tendo o governo estadual se apropriado delas. Posteriormente, o governo de Minas passou o direito sobre o terreno para o Salesianos sob o regime de comodato (empréstimo gratuito da propriedade por um período determinado, sob a condição de devolução do bem no prazo estipulado e no mesmo estado que foi encontrado inicialmente).

Disputas judiciais

Desde então a área vem sendo alvo de disputas judiciais. Já no século XXI, o Salesianos tentou promover a venda da propriedade para uma empresa do ramo imobiliário de luxo. A função social da propriedade, estipulada por Dom Pedro II, vinha sendo utilizada como justificativa para a desapropriação das terras pela população e pelos movimentos sociais. O assunto foi alvo de uma ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público Estadual, que pedia a devolução das terras já que o Salesianos estaria agindo “em desacordo com o objetivo original da doação, que seria para fins educacionais”, explica à Agência Primaz o advogado Valmir Peixoto Costa, mas “a sentença dada pela juíza de Ouro Preto [julgou] pela improcedência”. Isso porque, durante o processo, ficou comprovado que o governo Magalhães Pinto, durante os anos 1960, passou definitivamente a propriedade para as mãos do Salesianos.

Com a posse da área por uma entidade privada, a população de Cachoeira do Campo teme pelo destino do local. É o que conta à Agência Primaz, o historiador, professor e membro do movimento “Dom Bosco é Nosso”, Alex Fernandes Bohrer:Há cerca de 10 anos atrás o Salesianos tentou vender o prédio com as terras, a população de Cachoeira foi contra, acionou o Ministério Público, o Ministério Público entrou com uma ação, e essa ação se desenrolou nos últimos 10 anos”.

O valor físico e simbólico da propriedade é observado pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha). Segundo a instituição, o valor patrimonial do conjunto arquitetônico, arqueológico e paisagístico dos edifícios está fortemente vinculado ao “significado que as instituições ali instaladas, uma após a outra, tiveram para a memória local e estadual.

Além do prédio onde funcionava o Colégio, o terreno é composto por um antigo teatro; um mausoléu, na antiga casa do caseiro; uma construção onde funcionava a serraria hidráulica; o prédio utilizado para a residência de Augusto de Lima Jr.; um curral, e a ponte sobre o Rio Maracujá, além de estruturas arqueológicas.

Falta de diálogo com a Inspetoria Dom Bosco é debatida na reunião

A ausência da Inspetoria São João Bosco à 21ª Audiência Pública foi assunto de abertura da reunião. Moradores, autoridades e integrantes de movimentos sociais disseram se sentir desrespeitados com a falta de membros do Salesianos para discutir e esclarecer o cenário atual local. De acordo com a Câmara Municipal de Ouro Preto, esse foi o 3º convite negado pela instituição. Em nota enviada à Casa Legislativa, a Inspetoria disse estar aberta ao diálogo com os moradores de Cachoeira do Campo e região. Já para Isaías, presidente da Associação Comunitária do Residencial Dom Bosco, o tratamento da Inspetoria com a população possui fins mercadológicos, “eles estão sempre abertos ao diálogo, desde que o diálogo seja satisfatório a eles e não à comunidade”, declarou o morador.

Além da Inspetoria, outras partes interessadas no debate não enviaram representantes, como foi o caso do Ministério Público e do Executivo Municipal.

Indícios de irregularidades podem levar à CPI

Em meio às mudanças de posse, o uso das terras e das construções da propriedade vem sendo debatido há algum tempo. Com o fechamento do Colégio, em 1997, peças do estavam no seu interior foram levadas para o Centro de Memória da cidade de Barbacena. Segundo Alex Bohrer, parte dessas obras teriam sido bancadas por ‘vaquinhas’ promovidas pela população de Cachoeira do Campo. O historiador ainda contou, durante a Audiência, que a cadeira utilizada por Dom Pedro I e Dom Pedro II, único bem móvel tombado no município de Ouro Preto, estava no acervo. Com o tombamento, o objeto só podia sair do município para exposições, por isso precisou ser devolvido e hoje encontra-se na matriz. Alex ainda afirmou que as outras peças também deveriam ser devolvidas, já que possuem valor histórico para a cidade.

Outro ponto do debate foi a falta de infraestrutura no loteamento “Residencial Dom Bosco”. De acordo com moradores, as terras foram vendidas ilegalmente e a promessa de construção de infraestrutura básica lhes foi prometida, mas a realidade é de abandono. Segundo Isaías, as obras foram promessa de campanha do atual Prefeito: “Não temos água. Energia elétrica muito pouca. Esgoto, nada. Não temos calçamento nas ruas”, pontuou.

No decorrer da 21ª Audiência Pública, outras possíveis irregularidades foram listadas por moradores e vereadores. Em entrevista à Agência Primaz, o vereador Wanderley Kuruzu (PT) disse que há indícios de irregularidades: “Mais de 40 anos do residencial Dom Bosco abandonado. Grande possibilidade de crimes ambientais graves terem sido cometidos lá: voçoroca, erosões enormes que surgiram onde eram ruas. As famílias compraram pensando que o Salesianos, a Inspetoria São João Bosco, faria as obras de infraestrutura. Então foram centenas de famílias que foram enganadas”, cita Kuruzu.

Na reunião, os vereadores propuseram, para levantamento de dados preliminares, a instauração de uma Comissão Especial de Inquérito para averiguação da situação atual do Dom Bosco. Em caso de indício de irregularidades, a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) seria uma ferramenta a ser utilizada pela Câmara. Ainda de acordo com Kuruzu, “independente do que o Ministério Público está apurando, se houver uma denúncia de irregularidade a Câmara pode fazer sua apuração. Não há sobreposição”.

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Manifestação da Inspetoria Dom Bosco

Ao ser procurada pela Agência Primaz, a Inspetoria São João Bosco declarou que a abertura de uma CPI seria “incabível e sem motivação legítima, o que se denota de discurso ocorrido na audiência pública que serviria para intimidar os Salesianos, o que, evidentemente, não pode ser o espírito da condução de toda a situação envolvendo o imóvel”.

A instituição mencionou também a decisão do Ministério Público a favor do Salesianos: “conforme decidido recentemente em processo judicial, o imóvel é de livre propriedade da Inspetoria e não existe qualquer condicionante para sua utilização.

Proposta de interdição da Rodovia dos Inconfidentes

Além da instauração de uma CPI, outras providências para esclarecimento da situação do Dom Bosco foram colocadas em debate. O vereador Júlio Gori (PSC) propôs o fechamento da Rodovia dos Inconfidentes, principal ligação entre Ouro Preto e o distrito. Segundo Gori, a obstrução da via traria mais efetividade, já que impediria o trânsito de cargas de minério vindas da Vale e da Samarco, o que acarretaria prejuízos financeiros.

Entrada do terreno, com um arco na cor azul e identificação “Centro Dom Bosco”. Ao fundo da propriedade, depois de um caminho em aclive, cercado por vegetação, vê-se a fachada do prédio do antigo Colégio Dom Bosco
Movimentos populares pedem a desapropriação de terras do Salesianos. Crédito: Vinicius Dias/Reprodução Flickr

Movimentos populares entram em ação

Sobre a posse da propriedade, o advogado Valmir explicou à Agência Primaz que a decisão já foi tomada: “recentemente houve uma sentença do STJ e do STF confirmando a sentença dada pela juíza de Ouro Preto. Então, de certa forma, está decidida a questão jurídica em favor dos Salesianos”. O advogado ainda afirmou que, em relação a outras possibilidades jurídicas, pouco se pode fazer. É possível “entrar com uma ação rescisória, válida por dois anos contados do trânsito em julgado da última decisão, mas a chance de sucesso é muito pequena”, completou.

Alex Bohrer, contou à Primaz que o coletivo “Dom Bosco é Nosso” está se organizando para fazer um abaixo assinado: “O que a gente quer, agora, é a desapropriação do edifício e das terras, por parte do governo municipal, estadual ou federal”. A desapropriação transferiria a propriedade particular, atualmente de posse do Salesianos, para no domínio público. O professor salientou ainda a importância do movimento popular, uma vez que o tombamento do prédio que sediava o antigo Colégio só foi possível graças à comunidade de Cachoeira do Campo: “Há 10 anos atrás a gente conseguiu que o prédio fosse tombado pelo Iepha, porque o prédio seria descaracterizado, porque ali iria se instalar um hotel de luxo (…) Isso [o tombamento] inclui também uma parte das terras, porque aquelas terras possuem interesse arqueológico”, declarou.

Desde 03 de dezembro de 2014, as Escolas Dom Bosco são tombadas na esfera estadual, sendo o maior prédio tombado de Ouro Preto.

Sobre a situação do Residencial Dom Bosco, Kuruzu informou que já foi agendada uma reunião entre o prefeito Angelo Oswaldo e os representantes da Associação de Moradores do Residencial.

Próximos capítulos do Caso Dom Bosco

À Agência Primaz, o ISJB informou que as reformas para a restauração do prédio do antigo Colégio Dom Bosco têm previsão de início para 22 de setembro, com duração estimada em 12 meses. A Inspetoria disse também ressaltou que “todo o projeto de restauração da cobertura e fachadas da edificação principal do Centro Dom Bosco foi feito em conformidade com a normativa dos órgãos responsáveis pelo Patrimônio Histórico e Artístico”.

Ao serem indagados sobre o destino da edificação, a Inspetoria São João Bosco afirmou que ainda não há nada decidido, e que estão acontecendo conversas com instituições que demonstraram interesse no prédio e no terreno, como a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG). Durante a audiência, Hermínio Arias Nalini Júnior, vice-reitor da UFOP, reafirmou o interesse na área, manifestado formalmente em 2011, quando a Universidade enviou um ofício ao governo estadual expondo o interesse de obtenção da área para a expansão ou transferência do campus de ensino, ou ainda na construção de um colégio de ensino fundamental. Já a PMMG deseja instalar um colégio militar ou um museu no edifício.

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