- Mariana
Exposição Itinerante chega a Mariana abordando a história pouco conhecida da inquisição de judeus no Brasil
Trajetória de intolerância, torturas e prisões de cristãos-novos, judeus convertidos forçadamente ao catolicismo a partir do século XV, é contada através de imagens, objetos e informações na Casa de Cultura
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As práticas de inquisição foram criadas pela Igreja Católica Apostólica Romana durante a Idade Média como forma de combater manifestações de heresia e blasfêmia contrárias ao cristianismo. No imaginário popular, as cenas de julgamento, tortura e morte estão costumeiramente ligadas à famosa caça às bruxas. No entanto, o que muitos não sabem é que a inquisição foi revivida na Idade Moderna por reis católicos da Espanha, após o recebimento de uma bula do Papa Sisto IV para iniciar o Tribunal do Santo Ofício no país. Tendo como pano de fundo o combate à heresia, parte das motivações tiveram raízes no antissemitismo. Após a expulsão dos judeus da Espanha em 1492, muitos deles se refugiaram em Portugal, onde foram bem-vindos até o casamento do rei Dom Manoel I com Isabel de Aragão, herdeira dos reis católicos. Teve início, então, uma política de conversão forçada ao catolicismo, cuja única alternativa foi a saída do país, logo impedida pelo fechamento dos portos. Os judeus convertidos passaram a ser conhecidos como cristãos novos e muitos migraram para diversos países, dentre eles o Brasil, que passava pela colonização.
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Após a imigração, houve diversos casos de cristãos novos acusados de, secretamente, praticar o judaísmo. Como explica Marcelo Miranda Guimarães, criador do Museu da História da Inquisição, sediado em Belo Horizonte, um processo era aberto contra o acusado; com a formação de um tribunal, o réu era preso e torturado. Após a confissão, era considerado culpado pela heresia e tinha seus bens confiscados. Com forte influência econômica, os judeus eram alvo da inquisição também pelo interesse nestes bens. Os processos contra tal faixa populacional correspondia a cerca de 85% dos casos.
Pela doutrina católica, a confissão levava à absolvição dos pecados. No entanto, dependendo da gravidade da acusação ou se, ao contrário, o réu não confessasse suas práticas judaicas, poderia ser condenado à morte. No Brasil, não havia um tribunal inquisidor. Tal papel era desempenhado pelos bispos, padres e párocos que investigavam civis a partir de denúncias. Práticas como acender duas velas ao pôr do sol de sexta-feira (marcando o começo do Shabat, dia de descanso semanal no judaísmo), varrer a casa de fora para dentro (a fim de não descartar as bênçãos depositadas sobre o lar), e não consumir carne de porco, eram suficientes para gerar uma suspeita de “crime de judaísmo”. Os acusados eram exilados para Portugal, onde eram então julgados. Nos casos mais graves, condenados eram queimados vivos na Praça do Comércio, em Lisboa.
Cristãos Novos em Minas Gerais
Com um fluxo migratório influenciado também pelo ciclo do ouro, diversos foram os imigrantes que se deslocaram para Minas Gerais, sobretudo nas cidades de Ouro Preto, Mariana e Sabará. Aos 13 anos, Marcelo Guimarães soube ser descendente de cristãos novos residentes em Mariana. Na Casa Setecentista, localizou os documentos que comprovavam a consanguinidade, através da qual obteve a cidadania portuguesa.
Formado em engenharia, Guimarães trabalhou para uma firma alemã e aproveitou a estadia no continente europeu para viajar a Portugal, onde passou a consultar os arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa. No local estão arquivados cerca de 40 mil processos referentes à inquisição. Assim, ele descobriu que diversos brasileiros tinham uma história similar à de seus antepassados.
Em sequência, teve contato com professora Anita Novinsky, referência na pesquisa sobre a história judaica no Brasil, e se tornou um colecionador de peças referentes à história da inquisição de judeus, além de reunir uma biblioteca composta por 400 livros sobre o assunto.
Dando continuidade ao trabalho de Novinsky, a professora Neusa Fernandes, doutora em História Social pela USP, é autora do livro “A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII”, resultado de suas pesquisas onde recorreu à consulta presencial nos arquivos de Lisboa. Convidada para a abertura da exposição em Mariana, a historiadora explicou que há mais de 900 processos do estado de Minas Gerais. Destes, 78 referem-se aos presos no município de Mariana, usualmente acusados de bigamia seguida de judaísmo.
Segundo Guimarães, há interesse em desenvolver um projeto junto à UFOP para aprimorar a investigação sobre os casos de Mariana. Na exposição, há a listagem de pessoas da cidade processadas, cujos descendentes possivelmente desconhecem a história de seus antepassados. “Com certeza, há gente aqui em Mariana com esses sobrenomes que vem deles. Eu sou um dos que resgatou essa história e resgatou a identidade de um povo, porque você tem o direito de saber de onde você veio”, afirma.
Há dificuldade em encontrar documentos locais sobre a história dessas pessoas, o que pode ser explicado pelas condições em que migraram para o país, transmitindo sua cultura, principalmente via história oral. Guimarães acredita que investigações sobre possíveis descendentes torne possível a localização de suas antigas residências na região.
Uma curiosidade inesperada é a possibilidade de uma república de Ouro Preto, a Sinagoga, ter alguma ligação com uma antiga comunidade judaica da cidade, que se disfarçou sob a forma de irmandade até ser dissolvida por ação do Bispo de Mariana.
Para além do nome sugestivo, o endereço do casarão coincide com a localização onde a antiga comunidade se alojou, junto à atual Capela do Bom Jesus dos Perdões. Tal fato desperta o interesse de Guimarães, que acredita que escavações no local poderiam revelar itens dos cristãos novos na época, visto que enterrar objetos era uma das práticas comuns na tradição judaica.
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Exposição itinerante
Sediado no bairro Ouro Preto, em Belo Horizonte, o Museu da História da Inquisição foi criado em 2012, e se mantêm com apoio externo, através do projeto “Amigos do Museu”.
Atualmente, alguns dos itens viajam sob a forma de uma exposição itinerante, já apresentada em Ouro Preto, no anexo do Museu da Inconfidência, tendo por objetivo levar uma parte desta história pouco conhecida para outras cidades.
Na exposição, que ocorre no segundo piso da Casa de Cultura – sede da Academia Marianense de Letras – alguns dos itens adquiridos por Guimarães ao longo dos anos podem ser conferidos, como objetos pessoais de cristãos novos e documentos da época, dentre materiais originais e réplicas.
Imagens de Francisco Goya e Bernard Picart são reproduzidas como parte do material narrativo que reconta a história pouco estudada em território nacional. Além disso, há alguns dos microfilmes utilizados como fonte de pesquisa por Fernandes e Guimarães, material que tem sido digitalizado, como medida para sua preservação e consulta. É preciso ainda um especialista de paleografia para realizar a sua transcrição para o português atual.
Adotando uma postura de forte combate à intolerância religiosa, Guimarães busca deixar claro que a exposição não tem por objetivo intimidar a Igreja Católica, e pontua que, no ano 2000, o Papa João Paulo II pediu perdão pela perseguição feita por cristãos contra judeus. Esse posicionamento foi reforçado em 2004, por ocasião de sua visita ao Muro das Lamentações, em Israel, um dos locais mais sagrados para a fé judaica.
Defendendo o papel da exposição como um meio para interpretações e aprendizados com a história, Guimarães observa que, apesar do fim da inquisição ter ocorrido em 1821, parte da mentalidade intolerante permanece. “Hoje em dia, no século XXI, nós vemos o espírito da inquisição na perseguição contra minorias em países do Oriente, em lutas raciais e por questões ideológicas. Fica a mensagem que o Museu crê na construção de uma sociedade mais digna e mais pacífica, respeitando o direito de crença”, declara.
Em destaque entre as vestimentas de inquisidor e réu, a frase do teólogo e humanista Sebastian Castellion, “Matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem”, ressalta o quão cruel e injustificável é a violência que parte da intolerância religiosa. Seu combate, além de ser previsto pela lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, que criminaliza tais práticas discriminatórias, ocorre através da rememoração de fatos como a inquisição, promovidas pela ação de instituições culturais e da pesquisa histórica. A exposição na Casa de Cultura, em Mariana, fica aberta à visitação até 20 de novembro, das 9 às 17h, com entrada gratuita.