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Lei de cotas completa 10 anos de vigência no Brasil
Medida proporcionou profunda mudança no corpo discente das universidades federais do país, com demonstração da urgência do debate da desigualdade racial no ambiente universitário.
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Em 2018, estudo do IBGE intitulado “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” concluiu que, pela primeira vez, o número de estudantes negros (pessoas pretas e pardas) é maior que o de brancos nas universidades públicas do país, representando 50,3% do total dos estudantes. Em 2022, a Lei 12.711 completa 10 anos de implementação no Brasil, assegurando o direito que reserva uma quantidade de vagas destinadas à população negra e indígena.
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Essa bandeira, esteve em pauta pelo menos desde a década de 80, quando Abdias Nascimento, importante intelectual e ativista do século 20, foi um dos primeiros parlamentares do congresso brasileiro a apresentar um projeto de lei discutindo a necessidade de políticas afirmativas para a população negra do país, em 1983. Após anos de luta, as cotas começam a ser implementadas nas universidades públicas no início dos anos 2000, em instituições como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade de Brasília (UnB), entre outras.
A política tem como um dos pilares fundamentais a reivindicação da reparação histórica para a população negra, que foi escravizada por quase 400 anos, e que, após esse período, ainda é alvo da segregação e da desigualdade social. Como exemplo, dados colhidos na segunda edição do estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, de 2021, apontou que o rendimento médio mensal de pessoas brancas foi de R$1.866 por mês, praticamente metade dos R$945 pagos aos pardos.
Outro fator é a violência, com a população negra inserida em um processo considerado de extermínio. Dados do Atlas da Violência, de 2021, apontam que a chance de uma pessoa negra ser assassinada é mais que o dobro de uma pessoa branca, mais precisamente 2,6 vezes. No ano passado, de acordo com estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de cada 100 pessoas mortas 78 eram negras. A população negra representa também 84% dos mortos pelas polícias e as mulheres negras são as maiores vítimas do feminicídio, chegando a 62% dos casos.
Política de cotas
Pesquisa recente, realizada pelo Datafolha, indicou que metade dos brasileiros são a favor das cotas, com 34% contrários, 12% que não souberam responder e outros 3% indiferentes. Em uma análise, o Observatório da Branquitude apontou críticas que foram feitas à política de cotas ao longo dos anos. Jornais da grande mídia como Globo e Folha de São Paulo, que se posicionaram contra desde que o debate começou a ser feito pela sociedade, hoje tendem a ser favoráveis à medida em algum nível.
Alguns professores universitários se manifestaram durante décadas contra as cotas, como é o caso da professora emérita da UFRJ Yvonne Maggie, antropóloga cuja pesquisa são as religiões de matriz africana. Coletivos negros denunciaram o racismo que quer colocar o negro sempre como objeto de estudo e nunca como sujeito na Academia. Lilia Schwarcz, historiadora, antropóloga e professora da USP, que também é pesquisadora de questões raciais no país, foi uma das intelectuais que assinou o manifesto contra as cotas raciais anos atrás. Mas, segundo ela, após testemunhar o impacto das cotas na sala de aula, mudou sua opinião e passou a defender a medida.
Na região de Mariana e Ouro Preto, a população negra está ocupando o espaço acadêmico cada vez mais, mas ainda assim a luta por reconhecimento e para que o ambiente universitário seja cada vez mais diversificado acontece diariamente.
O professor Clézio Roberto Gonçalves, do Departamento de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) da Universidade, aponta que “ainda hoje, a ação afirmativa costuma ser reduzida às cotas, o que é um equívoco. É certo que elas podem representar o seu primeiro passo na perspectiva da oferta de oportunidades aos grupos beneficiários. As cotas são um aspecto ou possibilidade da ação afirmativa que, em muitos casos, tem efeito pedagógico e político importante, posto que força o reconhecimento do problema da desigualdade e a implementação de uma ação concreta que garanta os direitos (ao trabalho, à educação, à promoção profissional) para pessoas em situação de inferioridade social”.
Segundo ele o impacto das cotas no ensino superior é visível. “Do ponto de vista discente, a universidade não é mais a mesma. Os estudantes negros cotistas não impactam apenas o corpo, o cabelo, a vestimenta, mas a dimensão epistemológica: organizam-se em coletivos, reivindicam representação, questionam a dimensão eurocêntrica dos currículos e, por exemplo, a postura universalista da assistência estudantil”.
Questionado pela reportagem da Agência Primaz sobre os problemas enfrentados e o futuro das ações afirmativas, Clézio analisa que “a falta de uma política de permanência que envolva também as cotas raciais utilizadas para o ingresso do aluno na universidade é um ponto crucial”, acrescentando que cursos como Medicina, Odontologia e Engenharias, que exigem dedicação integral, ainda são um entrave para estudantes que precisam trabalhar.
“O objetivo das cotas não é apenas diversificar o ensino superior, mas dar condições para que os grupos discriminados possam competir em igualdade no mercado de trabalho. Enquanto houver fortes desigualdades de oportunidades entre brancos e negros no Brasil, as cotas devem continuar existindo”, conclui Clézio.
Sobre a contestação das ações afirmativas no ensino superior, o Pró-Reitor Adjunto de Graduação, Adilson Pereira dos Santos, explica que “as críticas são esperadas, pois o nosso sistema de ensino superior é marcadamente elitista, e a UFOP é parte deste sistema. No caso das instituições federais, como a UFOP, este elitismo era ainda mais agudo. Sendo assim, a instituição precisa lidar de maneira tal que se reconheça enquanto agente na perspectiva da democratização, como inclusão social deste importante espaço de prestígio social”.
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O NEABI-UFOP promove debates relacionados à questão racial no Brasil, realizando inclusive um amplo ciclo de palestras e discussões sobre os 10 anos da lei de cotas no país, como a palestra “É possível assumir-se indígena e/ou negro(a) na Universidade?”, que aconteceu no último dia de novembro.
Racismo
Estudantes do curso de História da UFOP e membros do Coletivo Negro Braima Mané, Vittor Policarpo e Maria Eduarda Câmara afirmam que as cotas representam uma mudança no cotidiano universitário que ultrapassa os muros do Campus. “Quando conseguimos ver uma pessoa negra estudando, fazendo uma pós-graduação, trabalhando como médico, advogado e o que mais ela quiser ser é muito bonito porque faz com que uma criança negra olhe para essas pessoas e sonhe também. Essa é uma oportunidade que historicamente foi negada à essa pessoa”, comenta Vittor.
Apesar desse fato, Maria Eduarda aponta que “muitas vezes o aluno cotista tem sua saúde mental afetada dentro da Universidade porque assume uma responsabilidade de ser sempre o melhor. Além do fato de que quando entramos na Universidade nos deparamos com a falta de uma bibliografia de autores negros. Dentro do curso de história nós vamos aprender sobre escravidão a partir da perspectiva de um autor que não é negro, então ainda falta essa representatividade para nós”.
“Quando um estudante negro entra em uma Universidade que é historicamente branca, que tem uma bibliografia branca, professores brancos, um espaço exclusivamente feito de pessoas brancas para elas mesmas, essa pessoa negra começa a aplicar o seu conhecimento ali dentro, trazendo novas discussões, problemas e um outro olhar”, ressalta Vittor.
“Abandonando as noites de terror e medo
Eu me levanto
Para um amanhecer maravilhosamente claro
Eu me levanto
Trazendo as dádivas que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto”
Trecho da poesia “Ainda assim eu me levanto” (Still I rise), de Maya Angelou.