Um dia brilhante
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Daquele ponto da cidade, o que mais a fascinava era o céu. Deitada, no cantinho da cama da avó, sentia o limite do tempo, observando as estrelas. Como rotina, assim que o dia começava a se recolher, ela se preparava para o espetáculo. Sua casa ficava ao final da rua. Tão alta a ladeira que parecia faltar pouco para alcançar as luzinhas que piscavam somente para ela.
Desde sempre, a família deixava as janelas abertas o tempo todo. Na casa, não havia luz, e por isso festejavam os dias de céu limpo. A mãe gostava da grande lua. Depois que o silêncio chegava para lhe fazer companhia, sentava-se na entradinha da cozinha, para que os outros não a vissem chorando. Sonhava com uma outra vida, e se perdia dentro daquela bola gigante que a observava. Seria a sua cúmplice de todos os pensamentos da existência difícil.
Nasceu ali mesmo. Agora, vivia com os pais e uma filha. Quando criança, a mãe falava de um lugar chamado escola. Uma casa bem grande, com várias salas, banheiros, corredores, cantina e um pátio que não cabia na vista. Vinha gente de várias partes da cidade. Trabalhou, fazendo a faxina das salas. Na hora da saída da criançada, pegava o material de limpeza e passeava pelas carteiras. Diante do quadro, admirava as letras dos professores. Via também números e sinais. Era uma mágica aquilo tudo fazer sentido para aquelas pessoas. Quando viu a filha nascer, pensou logo no que o futuro poderia reservar para todos eles. Entrava na escola e limpava mesas e cadeiras, planejando o momento em que traria o seu tesouro, vestida de branco e azul marinho, para se misturar com os demais.
A avó subiu a ladeira e ali ficou. O avô foi construindo, devagar, o barraco, no ponto mais alto da rua. Ele ouviu dizer que a prefeitura não chegava em todos os cantos para derrubar as construções. Teve sossego. Criou a família. Somente o filho escolheu outro caminho. Depois do asfalto, ninguém tinha notícia. A mãe confidenciava para a Lua o que sentia. Sabia que a matriarca havia sido resistente para a mudança, mas não teve o que fazer. Romper o ciclo é o que precisava conseguir agora, mas acreditava ter perdido a chance, quando a criança nasceu. Mais uma geração. A esperança do casamento, as noites em claro, a partida. Foi a primeira vez que experimentou o silêncio. E ele gritava dentro dela.
Sentia que as três tinham muito em comum. A pequena ouvia pedaços de histórias. Pertinho da janela, pedia ao infinito o que vinha do coração. A mãe. A avó. Do avô não dizia o que não compreendia. Foi então que a mulher mais velha, com toda a sua sabedoria, resolveu fechar a casa. Experimentou puxar o pedaço de madeira de um dos cômodos. Depois, o outro. Mais um. As duas portas: sala e cozinha. As três gerações descendo pela rua, juntas, pela primeira vez. O fim da tarde se aproximando. A menina tentando adivinhar a posição dos astros. Quis perguntar para onde iriam, e a mãe adivinhou. Não rompeu o silêncio da matriarca. Repetiria a grande experiência, o ensinamento que deveria levar para toda a vida. Caminharam as três. As casas aumentando, uma rua larga e muitos becos. Outras ruas. Carros. Aquele som que ouvia de tão longe. Sons desconexos. E a noite chegou. A criança olhava, admirada, para tantas luzes. Segurava a mão da mãe e da avó. Diante de uma grande praça, contemplou várias árvores iluminadas com luzes pisca-pisca. Imaginava o céu abraçando as árvores e as pessoas. Viu sorrisos, experimentou o coração mudar o compasso dos seus sonhos. Sim, a avó sabia das coisas. Um dia teria de voar.
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