Natal remexe com reminiscências
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Ruas lotadas de turistas, moradores e trabalhadores. O clima de Natal impulsiona confraternizações, reuniões, compras, engajamentos de pessoas e organizações. O tempo corre feito trem bala. Acumulo um punhado de papéis escritos e telas sobre a parede e o chão. A menina namora a vitrine da loja de bonecas. Imagino seu desejo de ter o brinquedo. O pai olha, pisca o olho para a vendedora. Creio que vai ganhar o presente. Reminiscências dos tempos da infância afagam tristezas. Lembranças que vêm, lembranças que vão, carinhos que ficam, carinhos que vão. Preparativos que vêm, preparativos que vão. Alma sem grandes expectativas. Creio que passarei o Natal com os Jotas. A gente aprende que nasce sozinho, vive uma época sozinho e morre sozinho. Depois que os nossos pais vão embora, o elo é rompido. Os encontros de final de ano são recriados, e a gente fica a sós com a gente mesmo, na companhia dos Jotas. E está tudo bem. Espero, com paciência, a fila do banco andar. Daqui a alguns anos, este banco será banco? Talvez não. Nossa casa não será nossa casa. Terá outros moradores, novas famílias, outros layouts ou será jogada no chão. Esse jardim não terá as mesmas cadeiras, as mesmas flores e o mesmo piso, quiçá, nem a fonte d’água e as árvores. Nossa rua terá resquícios dos moradores de outrora. Se tiver uma casa preservada, será propriedade de um parente distante, tão distante na árvore genealógica, que nem se lembrará da gente. E assim é o ciclo do tempo que marcha para frente. Ninguém é dono ad aeternum de nada. Nem semente, nem mesmo adubo. Sonhei que andava de avião. Piloto com vasta experiência em manobras radicais. Convocou os passageiros da aeronave. Éramos quatorze desconhecidos. Decolamos na velocidade da luz, feito táquion. O destino era um lugar dos sonhos. Não céu, não paraíso, mas contos de inteligências. Céu laranja, árvores rosas, grama dourada, lago bege, animais com pés e braços humanos… Entramos na cidade artificial que abria infinitas portas. Toquei numa aldrava de bronze. Ela me pediu para teclar no menu. A lista era imensa, com as opções: mudar a cor da cidade, trocar as árvores de lugar, mudar o corpo, a cor do cabelo, envelhecer, remoçar. Experimentar ser rico por uma semana ou pobre. Ser mulher, homem, criança, idoso, homossexual… Múltiplas experiências, sensações e desejos a valores a perder de vista. Acordei com o corpo empapado de suor. Abri o caderno. Anotei fragmento do sonho. Natal leva a gente a pensar demais. A mente anda cansada. O aparelho tecnológico exerce influência medonha na vida. Não quero falar de sonhos, nem de suas múltiplas interpretações. De certo, minha mente anda sobrecarregada de inteligência superficial. Nem meu sonho é livre para deambular. Arrumo a cama. Tento repetir as instruções de vó: “cama tem que ficar com o lençol e a colcha esticados, para não se dormir mal. Quem dorme numa cama desarrumada tem pesadelos ou noites mal dormidas.” E é verdade. Desço as escadas. Pego a vassoura de pelo, o balde e o pano de chão. Vou limpar o chão nos moldes dos meus antepassados. Não é saudosismo burro, é saudosismo natural: andar com os pés no chão de terra batida, sair correndo do chinelo que voava sobre a nossa cabeça, esperar a notícia do jornal ao vivo, arrumar a árvore de Natal, ajudar nos preparativos do doce de figo, de pudim, de pavê… Olhar o céu na varanda, com desejo de fazer parte da luz que pisca no alto do céu. De vera, o clima do Natal remexe com reminiscências. Se eu pudesse, de vera, teclava na tela do sonho: retroagir no tempo o Natal de 16 anos atrás.
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