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Hoje é terça-feira, 17 de setembro de 2024

Afinal, o treinador Cuca foi inocentado?

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

Foto: reprodução/placar.com.br

Na data de ontem, 03/01/2024, foi amplamente divulgado pela mídia brasileira que a sentença que condenava o treinador de futebol Alex Stival (Cuca) pelo estupro de uma criança de 13 anos, proferida pela Justiça suíça em 1989, foi anulada. Que o treinador não seria preso, todos já sabiam. Porém, com a anulação da condenação, pode-se dizer que Cuca foi inocentado?

Imediatamente após a divulgação da notícia da anulação da sentença, a internet se dividiu entre aqueles que afirmam que a decisão inocenta o profissional (e que considerável parcela da população, portanto, lhe deve desculpas pela forma como tratou o caso nos últimos meses), e os que afirmam que a anulação se deu em virtude de aspectos processuais, questões técnicas inerentes ao mundo jurídico, de forma que a decisão, ao não rever o mérito do processo, não inocenta o ex-jogador em nenhum momento.

Em primeiro lugar, cumpre alertá-los que a análise abaixo será unicamente sobre fundamentos jurídicos que têm gerado confusão nas redes sociais, a fim de esclarecer alguns pontos práticos de maneira didática. Meu juízo pessoal, se interessa a algum leitor, é de que é impossível fazer qualquer comentário sobre o mérito de um processo que tem mais de mil páginas e que está sob segredo de justiça. Causa surpresa que tantas pessoas, especialmente aquelas que trabalham em grandes veículos de comunicação, tenham opinião formada contra ou a favor do treinador, sem nunca terem lido uma página dos autos.

Nesse cenário, as informações que vêm sendo divulgadas muitas vezes são rasas e desencontradas, favorecendo a polarização de opiniões. A título de exemplo, contra o treinador, pesa o fato de que ele teria mudado de versão sobre ocorrido, bem como que teria sido encontrado sêmen com seu DNA no corpo da ofendida. Quem defende Cuca, costuma citar que os policiais que atenderam à ocorrência teriam dito que a vítima não aparentava estar abalada e teria pedido autorização para assistir a um jogo do Grêmio no dia seguinte à prisão dos suspeitos, bem como que o treinador não teria sido reconhecido pela criança como um dos abusadores, alegação contestada pelo advogado que representou a jovem à época. Houve até quem afirmasse que “a vítima sofre até hoje de depressão”, sendo descoberto pela Justiça que ofendida está morta há mais de 20 anos.

Do ponto de vista prático, pode-se dizer que ao pleitear a anulação da condenação, Cuca procurou atingir resultados muito mais relacionados ao campo da opinião pública, tentando reconstruir sua reputação, do que efeitos jurídicos propriamente ditos. Isso porque, independente de qualquer decisão que venha a ser proferida na atualidade, Cuca não pode ser preso em virtude de o processo estar prescrito. No Direito Penal, a prescrição é um instituto essencial na garantia dos direitos individuais e é fundamental entendermos o contexto sob o qual ela se insere.

De um modo muito grosseiro, podemos pensar no Processo Penal da seguinte forma: para garantir a segurança pública e reprovar condutas negativas, o Estado tem o poder de aplicar sanções penais aos indivíduos, dentre elas a prisão. Esse poder é garantido apenas e tão somente ao Estado, não sendo possível que qualquer particular resolva fazer o mesmo. Por ser uma medida extrema, privando o indivíduo de sua liberdade, a prisão é aplicada somente em último caso, quando outras medidas de segurança são consideradas insuficientes, razão pela qual os estudiosos costumam chamá-la de ultima ratio (o último recurso, a última via a ser utilizada).

Exatamente por ser tão agressiva, a prisão só pode ser aplicada se forem seguidos os princípios e as regras do ordenamento jurídico pré-estabelecido, que funcionam como garantias à pessoa que está respondendo a um processo criminal. Essas garantias são muitas vezes criticadas e associadas à impunidade, mas a verdade é que a violação delas abre espaço para prisões arbitrárias e políticas, como frequentemente ocorre em ditaduras. Ao conjunto dessas garantias, dá-se o nome de devido processo legal.

É dever do Estado, quando exerce seu poder de processar alguém criminalmente (o que se chama de pretensão punitiva), observar cada aspecto do devido processo legal. E aqui entra a prescrição: dentre as várias garantias concedidas ao réu, uma delas é a razoável duração do processo. Após a ocorrência de um crime, o Ministério Público tem um prazo para ajuizar a ação penal, e essa ação tem que ser julgada dentro de um certo limite de tempo. Por quê? Porque se o réu for culpado, ele deve começar a cumprir a pena imediatamente. Se for inocente, deve ser absolvido o quanto antes, para que volte a seguir sua vida. Essa é a chamada razoável duração do processo penal.

 Existe um prazo, que varia conforme a lei de cada país, sendo maior quanto mais grave for o crime, para que a ação penal seja ajuizada e concluída. Se esse prazo não for cumprido, ocorre a chamada prescrição punitiva. Em caso de condenação, começa a correr outro prazo: para que o Estado efetivamente faça o indivíduo cumprir a pena imposta, o que se denomina prescrição intercorrente. Ninguém pode ser condenado e ficar aguardando uma eternidade para cumprir a pena. É obrigação do Estado, que dispõe de recursos humanos e materiais (promotores, juízes, agentes de segurança, penitenciárias, albergues, etc.) providenciar que a sanção adotada seja cumprida.

No caso de Cuca, ocorreu a prescrição intercorrente: condenado, o então jogador, que estava no Brasil, não foi extraditado para a Suíça a fim de que cumprisse a pena, tendo em vista que o país não extradita brasileiros natos, e o processo prescreveu. Essa impossibilidade de extradição, cabe destacar, não gera impunidade por si só, porque a sentença produzida no exterior pode ser homologada no Brasil, de forma que o brasileiro nato condenado no estrangeiro cumpra pena em presídio nacional. É exatamente isso que a Justiça italiana requereu em relação ao ex-jogador Robinho, condenado em definitivo por estupro.  No caso de Cuca, não houve o requerimento em questão, com alguns jornais noticiando que não havia acordo para cooperação entre Brasil e Suíça à época do julgamento. Nesse sentido, a questão passa pela ineficiência do Estado (que possui Ministério da Justiça e diplomatas aptos a tratarem da questão), e não pode ser usada para prejudicar o réu.

Compreendida a prescrição, podemos voltar à recente decisão da Justiça suíça: a condenação de Cuca foi anulada porque ele não tinha advogado constituído no processo. Aqui, é necessário separar as coisas: o fato de alguém ser intimado e não se apresentar ao tribunal (revelia) não lhe retira o direito de estar representado por advogado, ainda que o defensor tenha que ser nomeado pelo Estado. Mesmo sem a presença do réu, é necessário que um advogado atue representando seus interesses e elaborando as perguntas que achar pertinentes à vítima e às testemunhas, bem como apresentando tese defensiva. Não existe o menor resquício de processo legal em um caso em que não exista defesa regular, e chega a ser surpreendente que as leis de um país de primeiro mundo, como a Suíça, permitissem que isso ocorresse à época. Conforme explicou a Folha, a legislação foi alterada nos anos 2000 e retroagiu em benefício do réu. Por isso, o julgamento foi anulado, sendo determinado, inclusive, que Cuca seja indenizado.

Mas, afinal, o treinador foi ou não inocentado? A anulação da condenação não entrou no mérito dos fatos. Não analisou, por exemplo, se Cuca estava presente no momento do crime e se praticou algum ato sexual. Por isso, defendem alguns, houve mera anulação da condenação, não sendo o treinador considerado inocente. Compreendo esse pensamento, mas compartilho de outro entendimento, por uma questão técnica: a presunção, em qualquer Estado Democrático de Direito, é de inocência.

É simples: se não existe condenação, o indivíduo é inocente. Esse princípio está ilustrado no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, mas é universal, construído a partir de séculos de estudos jurídicos, sociológicos e filosóficos, como Dos Delitos e das Penas (Beccaria, 1764) e Vigiar e Punir (Foucault, 1975). Em qualquer sistema jurídico que respeite minimamente os direitos humanos, todos são inocentes sem que haja condenação transitada em julgado. Ora, dizer que a única condenação contra o réu é decorrente de uma sentença anulada é o mesmo que dizer que não existe condenação. Voltamos, então, ao começo do parágrafo: se não existe condenação, o indivíduo é inocente.

Isso não quer dizer que minha convicção íntima (ou a da juíza Bettina Bochsler, que anulou o processo) seja de que Cuca não cometeu o crime. Mas, do ponto de vista jurídico e processual, sem que exista sentença condenatória, o indivíduo pode e deve ser chamado de inocente. Isso é o devido processo legal. Vale para Cuca, Tício, Mévio e qualquer outro sujeito de direito.

Observações:

  • Nota aos amigos advogados e bacharéis: o objetivo desta coluna é levar conteúdo jurídico em linguagem simples e acessível para a todos os públicos, evitando-se o juridiquês e temáticas naturalmente controversas na doutrina.
  • O texto foi escrito e gravando em 04/01/2024
Vítor Morato
Vitor Morato é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e pós-graduando em Direito Público. Instagram: @vitormorato.
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