Chuva, céu e portal
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Ouça o áudio de "Chuva, céu e portal", de Andreia Donadon Leal:
Chuva fria e fina. Bate um vento gelado no meu rosto. Badulaques tintilam na sacada da casa ao lado. Janela aberta, chuva entra sem cerimônia. Continuo sentada na varanda, espio o tempo nubladíssimo. Neblina por todos os lados. Fumaça densa encobre casas, casarões, igrejas, ruas, jardins e montanhas. Das brumas impressionantemente artísticas, Layon é menestrel. Galo Véio desfilaria feito um raio pelas vielas, aclives e declives das ruas e rodovias. Galo Véio voa nas nuvens cheias… Na Casa de Cima, ultrapassa a velocidade de um raio/ é táquion. Um motoqueiro interrompe meus voos imagéticos, perdido pelas travessas do bairro. Pudera, as ruas são similares, estreitas demais, mas as casas não são as casinhas de outrora. Populares quase nenhuma; uma quase de frente ‘pra’ minha residência é relíquia. Tem uma beleza invulgar, pois é pequenina. Quisera, um dia, tirar uma foto da casinha para guardar nos meus arquivos. Queria a casinha. Não está à venda. Que pena. Transformaria o espaço em biblioteca, sem aumentar a casa. Quisera, sem poder. Resta-me fazer de conta que comprei a casinha. Pintaria de rosa e azul. Colocaria colchões com almofadas em uma sala de leitura. Gosto de ler de olho nas páginas do livro e do teto. A leitura proporciona viagens pelas letras, paredes, janelas e portas. Fingi ser vento gelado, que soprava as encostas da cidade, junto com a chuva. É bom ser vento na companhia das águas. A gente cria forças, asas e sonhos. Frio, chuva e vento são amigos de velhos tempos, feito sol, calor e brisa. Esses trios são imprevisíveis, também. Em época de calor e sol, amanhece bruma, frio e chuva. Mudança de turnos dos trios. Suo, apesar do vento. Menopausa. É tempo de desacelerar. Dores, vagarosidade; aprendi a tomar pequenas doses da vida ao invés de goles afoitos ou apressados. Aprendi a degustar a refeição ao invés de comer em pé. Aprendi a pisar o pé no freio, a emudecer a rudeza e fraqueza. Aprendi a rezar e agradecer. Potencializei gratidão e reconhecimento aos feitos alheios. Vou lapidando arestas da personalidade. Uma ponta menos pontiaguda aqui, outra lá. Vou aprendendo; a aprendizagem é até o último toque do sino. Celular vibra. Desligo o aparelho. Quantas mensagens e urgências desnecessárias! Urge meu desejo de respirar e olhar a bruma sobre o cenário. Uivo de vento e chuva. Quanto tempo não ouço esse assobio musical? Não me lembro; é que o tempo andou corrido, sem direito a pausas. Ritmo frenético e líquido. Tudo se esvai e se dissolve, se não houver intensidade. Breve, a vida. Experimentei, há pouco, a extrema mansidão. Perguntaram-me se faço meditação. Acho que tenho meditado com o tempo… Esse tempo é contraditório: fugaz e lento/ lento e fugaz. As estações vêm e vão, sem envelhecerem. Meu corpo sente as marcas do tempo. Meio século de vida… Envelhecer é vereda e estação do tempo de todos. Há altos e baixos, equilíbrios e desequilíbrios, e nesse vai e vem, a gente vira malabarista. Equilibra-se na corda bamba, nos rodopios e nas durezas… Um pássaro pousa do meu lado. Nem tão próximo, na segurança das relações: distanciamento seguro/ proximidade relativa. É preciso ter espaço para correr ou se aproximar. Nem longe, nem próximo. Ele acompanha meu olhar disperso. Não sei no que pensa. Usufruo de minha companhia, se estou só. Aprendi a olhar para o céu. Céu nunca foi limite de nada. Céu não é teto, é portal para voos suaves e planados nas térmicas, ou prolongados à propulsão de asas ou hélices. Teto de minha casa ou a bruma limitam. Quisera tanto comprar aquela casinha…
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