A família
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Ouça o áudio de "A família", de Giseli Barros:
Empreendimento anunciado na TV, em horário nobre. Casas amplas, seguras e de alto padrão. O conforto de um condomínio em novo bairro. Na imensa tela, o casal sorri para os filhos, as crianças correm pelas ruas pavimentadas, enquanto um cachorrinho tenta segui-las. A obra segue em todo vapor. A fotografia é persuasiva no painel de grandes dimensões. Contratos são ansiosamente assinados, pois os sonhos não esperam. Cada um quer a sua fatia de felicidade.
A euforia dá o tom da conversa nas filas dos supermercados, na porta das escolas, nas academias. Alguém diz que gostaria de sugerir à construtora modificações que trariam um ar ainda mais sofisticado ao lugar. Outro comenta sobre o seu tempo de infância, quando por ali era apenas barranco perto da estrada. Do outro lado, ficava a parte mais movimentada da cidade. Agora, o progresso finca de vez a sua bandeira. Os interlocutores ficam animados com fragmentos das memórias recuperadas. Outrora, era comum a liberdade da meninada. Algumas ruas de terra, o mercado, a escola, a igreja, uma praça, casas com quintais. Um deles pega o aparelho celular e exibe a coleção de fotos antigas. A mulher se emociona ao reconhecer o antigo pomar da casa da avó. Recupera o cheiro das estações, um amigo lembra dos namoros.
Melhor acordar para o presente. Uma voz mais grave fala dos problemas urbanos. A segurança é o calcanhar de Aquiles do país. Se ele tivesse comprado o seu pedaço, colocaria muros para cercar o bairro. Exalta-se e diz que não há policiamento adequado. Nem nas escolas as crianças estão seguras. É preciso treinar os porteiros, colocar seguranças armados. Nenhum lugar está seguro. O grupo se divide. No entanto, a fala é comum. O discurso se altera, é interrompido com a partida de uns e a chegada de outros.
Os dias acordam com a expectativa da entrega das chaves. Há muito trabalho a ser feito. Esperava-se uma data para marcar no calendário, mas imprevistos acontecem. A primeira casa acende as suas luzes. A segunda. Outra. Carros nas garagens. Crianças aprendem a andar de bicicleta nas ruas particulares. O fim das tardes parece primavera.
A construtora é pressionada, porque o som das máquinas incomoda a paz dos pioneiros e os demais desejam o seu lugar. Ao passo que o trabalho segue em dias intermináveis, olhares curiosos acompanham a marcha dos homens de uniforme. É a modernidade. Num canto, há um declive; no fundo, um córrego. Há entulho esquecido: restos que serão recolhidos ao final da obra. O primordial é entregar a fatia de felicidade a quem é de direito. Um morador explora a paz do fim de semana. Caminha pelos arredores. Admira as construções imponentes. Sente-se bem com a área arborizada ao redor. Olha para o declive, identifica o córrego. Revolta-se com o entulho. Há um enorme tubo preto no terreno. Não sabe se é lixo da construtora ou restos de um antigo lixão. Aproxima-se. A curiosidade aumenta. Colchão velho e fedorento. Preso a uma corrente, um cachorro late. O tubo se retorce completamente. A tarde é ainda úmida da chuva recente. O tênis gruda no barro. Uma criança chora, fazendo coro com os latidos insistentes. O homem agacha. Duas crianças e uma mulher amamentando o seu bebê. Progresso controverso.
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