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Hoje é quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A grade

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cão abandonado, capa da crônica "A grade"
Foto: Hong Son/Pexels

Ouça o áudio de "A grade", de Giseli Barros]:

Da carroceria da camionete, brincava com o vento fresco da madrugada. A rotina da casa despertava bem cedo, para que qualquer atraso nas tarefas fosse evitado, e ele sabia disso. Era o primeiro a acordar. Aguardava a comida e o agrado do dono. Em instantes, tomava seu posto e seguia para a vida em liberdade.

Dessa vez, porém, o homem desligou o motor no meio da estrada. Os faróis abriram caminho para ninguém e, de repente, o final da noite caiu mais pesado. Ficou ali com o próprio silêncio. Correu. Latiu. Não reconhecia o lugar. O outro voltaria, certamente. No entanto, as horas, a fome. Sem recompensa, veio o vazio. Ele retornaria. Teria de retornar. Entrou pela mata. Correu pelos arredores. Voltou ao meio da estrada. Dormiu. Nada. Fez o que pôde.

Poderia estar perto de casa, porém, quando não se sabe por onde ir, qualquer caminho é solução inviável. Foi então que disparou como se fosse avistar o dono logo à frente. Latiu muito ao ouvir tantos motores avisando que a cidade estava próxima. Cansado, parou. Ficou ofegante, tentando distinguir fisionomia amiga. Passados alguns minutos, seu instinto o levou à porta de um mercado. A garganta queimava e o estômago parecia-lhe um imenso buraco. Mirou o homem. Pediu ajuda com um latido forte. O outro o enxotou, jogando-lhe água. Fugiu. Ainda assustado, lambeu os pelos e se deixou ficar secando ao sol, na calçada. Ao menos, naquele pedaço de tempo, sentia a sede se disfarçar, diminuindo a sua agonia.

O dia, agora, mais quente, estava apinhado de carros no asfalto e de pessoas apressadas, emitindo sons desconexos. Ficou imóvel, tentando escapar de pés distraídos. Distinguiu, de repente, uma camionete. O sinal abriu e ele disparou. Em vão, tentou alcançá-la. A rua ficava, cada vez mais, cheia. Voltou ao mesmo canto em que era possível se esconder. De lá, avistou outro cachorro. Na dúvida, foi até ele. Talvez não soubessem, mas eram iguais juntando as suas diferenças. Leve estranhamento, uma conversa através do faro. Correram muito até chegarem perto de umas grandes latas. Comeram tudo o que podia. Descobertos, não esperaram novo castigo, seguindo para outro lugar.

Tantas casas e de diferentes tamanhos. Muros altos e portões imensos, totalmente fechados. Ainda assim dava para sentir a vida do outro lado. De repente, um cheiro despertava antigas memórias. Tentava se espichar ao máximo para ver o que havia do outro lado, buscando uma fresta qualquer. Outras construções enormes recebiam seus moradores por pessoas uniformizadas. Quis passar por onde os carros tinham acesso. Viu alguém levar um cachorro no colo. Muitas crianças brincavam por lá. Apressou-se. Olhou para o amigo. Sentiu, porém, uma pontada forte no dorso. Ganiu alto. Não era permitido permanecer ali.

Algumas árvores acolhiam trabalhadores da construção civil, na hora de descanso. Em outro ponto do bairro, moradores avulsos, em habitações improvisadas. Um homem dividia uma lata e um papelão com um amigo de quatro patas. Aguardou acolhimento. No entanto, precisou ir adiante. No silêncio do asfalto vazio, barulhinhos cadenciados de oitos patas, que se protegiam, buscavam abrigo. Confiaria no instinto daquele que encontrara comida. Seguiria o seu comando sem nenhuma objeção. Assim, na medida em que andavam pelo quarteirão, começava a acostumar-se com o que vinha das casas. Numa sombra qualquer, deitava e se coçava na grama. Beliscava o amigo, na intimidade das primeiras confidências. Fazia pouco tempo que a madrugada da véspera havia lhe apresentado o medo. Reconheceria a camionete em qualquer lugar. Distinguiria o cheiro do dono. Se lhe mostrassem o caminho, saberia como voltar para casa. Não desistiria. Eufórico, olhou para o outro e correram. Dobraram esquinas. Estavam no mesmo lugar.

Contudo, nas ruas padronizadas, viu uma casa com uma grande área verde. O portão bem alto era de grades e revestido por uma tela na parte inferior. Parou. Mais ao fundo ficava a casa com uma varanda que se encontrava à garagem. Uma camionete como a sua. Lembrou-se da carroceria e do vento que cheirava à liberdade. Conseguia sentir o afago do dono. O amigo veio para perto e sentou-se ao seu lado. Um aroma de muitos temperos os envolvia. A tarde chegava ao fim. E enquanto confiavam na possibilidade de sentirem a grama fofa e verde daquele jardim, avistaram que outro já ocupava a casa. E assim ficaram, longo tempo. Talvez, o portão se abrisse.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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