Lama vira pó
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Ouça o áudio de "Lama vira pó", da colunista Andreia Donadon Leal:
O calor não se dissipou, mesmo no outono. Nova onda de doenças escabrosas surge a cada dia, quitando vidas. A cidade não é mais a mesma. Há tempos não é mais. Evidentemente, com o passar do tempo, ninguém é o mesmo. Uns saem de cena (eis a mais plena democracia e continuidade da espécie: do pó ao pó), outros surgem. Novas ideias e novos movimentos parecem aumentar repertórios culturais. As ideias e iniciativas que deram certo permanecem, eternizando feitos que farão parte do patrimônio cultural e educacional, independentemente da valorização de quem detém, agora, o poder das escolhas. Pois é, o futuro é seletivo; o futuro é incorruptível, mas, nem sempre justo com o passado. Aqui, onde o sentimento de liberdade brotou das mãos calejadas, do trabalho árduo e abnegado; das mãos divinas de escritores que poetizaram a cultura, dos artistas e trabalhadores que adornaram templos sagrados e outros monumentos, do povo que deu origem a este santuário que carrega o nome de uma mulher, sinto-me grata pelos que dedicaram suas vidas em nome da construção deste patrimônio histórico. O tom deste adminículo é de uma falsa e passageira alegria, pelos feitos dos que passaram por aqui, deixando suas marcas na construção de uma cidade planejada, organizada, limpa, voltada para a qualidade de vida dos moradores, comerciantes e de todos que se relacionam com a cidade. Dos feitos daquela geração que planejou uma cidade inteligente, ou daqueles que adoram um termo estrangeiro para denominar conceitos. Smart city, muitos dizem e escrevem, num pedantismo que me enfastia o dia. Sinto cheiro de urina entranhando minhas narinas. Chão grudento de restos de bebida e comida. Caminho pelas ruas de seixos. Tropeço, como sempre tropeço ao andar com passos mais largos. Tenho medo de andar sozinha na rua, de sair de casa depois das 18h. Tenho medo de quem me aborda na rua. Dizem que é síndrome do pânico, potencializada pela violência e crescimento da cidade. Creio nestas premissas. Ouvi de alguns moradores nativos que desistiram daqui. “Simplesmente, não tenho fé.” A crença nos governos e nas promessas anda de mal a pior, num elevado índice de descrédito e desesperança. Os tempos andam difíceis. Essa geração anda doente. Nossa geração (a geração de ferro) anda triste e desmotivada. Criei uma cidade-de-faz-de-conta dentro da minha casa. É aqui que construí paredes fortes para me proteger do frio, do calor, da violência, da mentira e de todo o mal. É aqui que participo de atividades culturais que fazem parte do meu repertório, e compreensão do que é cultura de base. Aperto as teclas de um controle que sintoniza canais de programas que me tocam o coração; sinto-me parte da plateia que está do outro lado da tela. Rezo mirando o céu noturno. Este é o horário que converso com Deus; no repouso dos ruídos e no toque da brisa. Ligo o aparelho móvel. Minha geração fala sobre os bons tempos. Faço de conta que estamos sentados no passeio da rua. E tudo era risos e sonhos. Quem viveu mais de meio século é assim. De vez em quando, fujo de casa, quando o sol ainda não se recolheu. Sento-me no banco do jardim. Fecho os olhos, faço de conta que estou na década de 80/90. E tudo era lindo. E tudo era cheio de árvores. E tudo era um doce abraço da bruma que nascia unida ao arrebol. E tudo era quase trânsito de pessoas que se conheciam… E tudo era alegria, sem modéstias, sem exageros, sem falsas pretensões e sem donos da cidade. E a cidade era do povo. E tudo era mais verde, florido e mais terno. E tudo era mais limpo, não era líquido, não era ar. Mas tudo começou a virar lama; e lama, com longo período sem chuvas, vira pó…
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