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Hoje é quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Sobre rodas

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Sobre rodas

Ouça o áudio de "Sobre rodas", da colunista Giseli Barros:

Ela acordou animada, esperando o carro chegar. O pai, com muito sacrifício, havia comprado um trailer que serviria para a venda de produtos no litoral. A família planejava a viagem, fazendo economias semanais. Nas noites em claro, enquanto o homem discursava sobre a nova vida, a mãe passava as horas com as contas reais para o dia seguinte. No fim de alguns meses, um vizinho fez uma proposta irrecusável, e o pai aceitou engajar-se na empreitada. Sentados à pequena mesa da cozinha, fez todos os cálculos com o que gastariam, se escolhessem bem o que vender. “É uma oportunidade para fazer um extra. Cada um vende o que sabe fazer. Meu cunhado sustenta uma família inteira lá.”, disse o vizinho, com os pés fincados no chão.

O caderninho de arame, com alguns desenhos feitos pela filha mais velha, serviu de livro-caixa. A mulher era a responsável pelas compras, pois era muito exata em tudo o que realizava. Cortava os excessos e as mãos eram perfeitas para a cozinha. Ninguém reclamava do seu tempero. Descobria facilmente o ponto de cada prato. Em pouco tempo, estavam instalados entre outros carros semelhantes, prontos para o trabalho. Alguns mais velhos, com as rodas arriadas, outros um pouco mais novos e o deles, no espaço que lhes cabia.

O cardápio tinha sido improvisado, com a letra bordada da avó, professora aposentada. Não gostava muito do genro, mas apoiava a filha no que podia. Foi a primeira freguesa, pois queria conferir o empreendimento da família. O homem afirmava que ficariam ali somente o tempo necessário para terminar de juntar o valor que faltava para a mudança. Nessas horas, discorria sobre o calçadão. Contava inúmeras vezes do passeio feito na infância. Lembrava-se das histórias de quem ganhava dinheiro. Bastava ter vontade de trabalhar. A mulher aceitava os sonhos dele.

A freguesia sentia o aroma da comida e logo chegava para os pedidos. A confluência de vozes vibrava com o futuro da família. Tudo caminhava como tinha de ser. O carro no mesmo lugar. Seguro. A filha mais velha sentava-se no canto, deslizava a mão delicada pela roda quase nova. A mãe, às vezes, pedia um favor à garota. Gostava de mostrar a ela como preparar os temperos, a medida de cada ingrediente. “Um dia, você precisará saber cozinhar. Se não for para trabalhar com a gente, pode ser que se case e vá criar a sua família.”, repetia como um mantra. Não se sabe como a mãe perdeu o ponto do último prato. Perguntaram sobre ela. Esperaram a sua volta. A avó não queria ir à primeira noite. Disse que poderiam deixar o carro fechado. Ela mesma faria um cartaz. O homem reclamou. A mulher pediu ajuda. Com mais um dia, estaria de volta. A menina assumiu como ajudante da avó.

Os dias se estendiam devagar. A eternidade era a aparente suspensão do tempo na casa vazia. A menina ajustava o tempero. Alguém comentou sobre a proximidade dos sabores. O cheiro buscava as pessoas que passavam do outro lado da rua. A avó anotava os pedidos e conversava com os clientes. O homem foi murchando. Do sonho com a cidade praiana, desejava, agora, ficar recolhido em pensamentos aleatórios. Falava menos. Cuidava do serviço com as compras e reparos. E, quando podia, tratava de um passarinho em casa, imaginando gaiolas de todos os tipos. Às vezes, um cliente antigo perguntava da viagem. Ele notava a brincadeira. Desviava o assunto. A sogra intervinha, anotando os pedidos. Gritava pela menina que ficava, cada vez mais, dentro da lata que sustentava a todos.

Adolescendo, reparava de lá, na cara do pai que envelhecia. Perdia o olhar nos pés inchados da avó. Escondia-se dos olhares curiosos de quem se assemelhava à sua idade. Não gostava de atender os pedidos dos rapazes. Sentia as paredes do cubículo quase esmagando o seu corpo. Quando terminava mais um dia, o sono pesado apagava o que ainda restava de antigos pensamentos. Sua folga ainda era ficar sentada, em pequenos intervalos, ao lado do carro que não ia para lugar algum. Com as mãos salpicadas de marcas feitas da gordura quente, fingia deslizar os dedos pela roda murcha. Sem saber se algum dia estaria longe dali, voltava à realidade atraída pela voz rouca. A avó destacava o papelzinho do bloco e, sabendo dos olhos vivos da jovem, disfarçava sobre qualquer entendimento, entregando-lhe mais um pedido.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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